ARTIGO DE REFLEXÃO
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2020.vol05.0007

 

Brasil: lost in translation

 

Brazil: lost in translation

 

Brasil: lost in translation

 

 

Pedro Henrique Alberton PERÚSSOLO

Curitiba, PR, Brasil

 

 


RESUMO

Este trabalho teve por objetivo apresentar uma crítica descolonial, por meio da psicologia analítica, usando como principais aportes teóricos o perspectivismo ameríndio e as produções da literatura brasileira, enquanto agenciadora de modos de existência não-eurocêntricos. Para tal, o percurso inicia com a descoberta das Américas, realizada por Cristóvão Colombo enquanto uma trajetória errante, e deságua na iminência de criar outros mundos possíveis e habitáveis, visto que este mundo, criado por incontáveis processos civilizatórios, encontra-se em estado terminal após projetos etnocidas e ecocidas. A metodologia utilizada foi a de revisão de literatura, com o estabelecimento de uma literatura comparada entre as áreas da psicologia analítica, antropologia pós-estrutural e demais produções literárias. Ao fim do estudo, apresenta-se um novo modo de fazer-alma, bem como de resgate da pedra angular sobre a qual a psicologia analítica foi erigida: a alteridade.

Descritores: Psicologia analítica, literatura brasileira, alteridade.


ABSTRACT

The objective of this paper is to present a decolonial critique, through analytic psychology, using as main contributions the indigenous peoples of the Americas perspectivism and Brazilian literature, as agents of non-Eurocentric forms of existence. To achieve this, the route starts with the discovery of the Americas by Christopher Columbus, as an unpredictable trajectory, and flows into the imminence of creating other possible and inhabitable worlds, since this world, created by countless civilizing processes is in a terminal state after ethnocidal and ecocidal projects. Literature review is the methodology used, establishing a comparison between the areas of analytic psychology, post structural anthropology and other literature. At the end of the study, a new way of soulmaking is presented, as well as the rescue of the cornerstone on which analytic psychology has been built: alterity.

Descriptors: Analytical psychotherapy, Brazilian literature, alterity.


RESUMEN

El objetivo de este trabajo es presentar una crítica decolonial, por medio de la psicología analítica, usando como principales aportes teóricos el perspectivismo amerindio y las producciones de la literatura brasileña, como agentes de modos de existencia no eurocéntricos. Para tanto, el recorrido se inicia con el descubrimiento de América realizado por Cristóbal Colón, como una trayectoria errante, y desagua en la inminencia de crear otros mundos posibles y habitables, ya que este mundo, creado por incontables procesos civilizatorios, está en estado terminal después de proyectos etnocidas y ecocidas. Se utiliza la metodología de revisión de literatura, estableciendo una comparación entre las áreas de la psicología analítica, antropología posestructural y demás producciones literarias. Al final del estudio, se presenta un nuevo modo de hacer alma, como también de rescate de la piedra angular sobre la que se ha erigido la psicología analítica: la alteridad.

Descriptores: Psicología analítica, literatura brasileña, alteridad.


 

 

A travessia quase acidental de Cristóvão Colombo

Partindo de um locus imaginal - o qual, de acordo com Corbin (1972), define-se por um lugar que nos convida a olhar para a alma enquanto uma perspectiva - a descoberta das Américas pode ser contemplada como um desvio de percurso. Logo, neste artigo, partimos do cenário imaginativo enunciado, denominado aqui de "A travessia quase acidental de Cristóvão Colombo". Dada essa premissa, fiquemos com a imagem e brinquemos com a fenomenologia por ela proposta no melhor estilo serio ludere, na tradução literal: "jogo sério"; manter uma atividade lúdica de modo fiel às imagens, conforme versado por James Hillman (1975/2010) em sua introdução de "Re-vendo a psicologia".

De acordo com o historiador Charles Mann (2012), em seu "1493: a descoberta do novo mundo que Cristóvão Colombo criou", essa rota errante do navegador italiano foi o início do processo de colonização da América do Sul e da América Latina. Diante do título de Mann (2012), faz-se prudente questionar: que novo mundo é esse que os europeus julgavam ter descoberto?

Dada pergunta carrega em si um problema bastante sério que foi trabalhado por teóricos do pensamento pós-colonial, como Frantz Fanon (1952/2008; 1961/1979), Gayatri Chakravorty Spivak (1985/2010) e Aimè Césaire (2010). A reflexão proposta pelos autores citados vai em direção à reflexão de que os povos colonizados em momento algum foram concebidos em sua legítima "outridade"1, haja vista os processos civilizatórios que lhes foram impostos.

Contudo, como visto em Marx (1852/1997), o processo de historização tende a cobrar seu preço e, quanto mais ignoramos a história, mais as tragédias e farsas repetem-se(in)sucessivamente. O preço a ser pago por minha geração advém daquilo que meus antepassados não fizeram; eles não se conscientizaram do regime exploratório em que foram criados e o replicavam sem mais nem menos. Parece-me ser tempo de assumir que a civilização europeia "é uma civilização moribunda" (Césaire, 2010, p. 15).

O fato é que a civilização chamada "europeia", a civilização "ocidental", tal como foi moldada por dois séculos de regime burguês, é incapaz de resolver os dois principais problemas que sua existência originou: o problema do proletariado e o problema colonial. Esta Europa, citada ante o tribunal da "razão" e ante o tribunal da "consciência", não pode justificar-se; e se refugia cada vez mais em uma hipocrisia cada vez mais odiosa, porque tem cada vez menos probabilidades de enganar. A Europa é indefensável (Césaire, 2010, p.15).

Utilizando de sua abordagem descolonial, Fanon (1961/1979) nos enuncia que o regime europeu operou durante séculos por meio da morte de mundos, que não os pregados pela razão catedrática e ortodoxa correspondentes à expansão de seu próprio continente, colocando o resto do globo em situação calamitosa. Agora que atravessamos um período geológico, denominado Antropoceno (Artaxo, 2014), caracterizado pelo momento no qual os humanos tomam o controle do planeta, em um mundo cada vez mais destruído e esgotado em recursos ambientais, as catedrais parecem ter virado destroços e de nada adianta rezar aos deuses que, por séculos, foram subterfúgios para usar de métodos necropolíticos. Receio que eles não atenderão e faltarão ao dia do Juízo Final. Digam olá ao apocalipse. O inferno de Dante é aqui!

 

Ideias para adiar o fim do mundo?

Começo esse pequeno subtítulo, que preferiria não precisar escrever, com uma epígrafe de Gabriel García Marquez em seu celebrado "Cem anos de solidão" de 1967. Gostaria que ela seguisse pertencendo a Macondo e não atingisse o Brasil, mas, infelizmente, as pretensões do Brazil - utilizaremos desse jogo de linguagem para reintroduzir a crítica descolonial no texto, de modo que se elucide ao leitor que a criação de novos mundos perpassa necessariamente pela emancipação da lógica binária de produção-consumo (Deleuze & Guattari, 1972/2010) - não tornaram isso possível.

Durante mais de dez dias, não tornaram a ver o sol. O chão tornou-se mole e úmido, feito cinza vulcânica, e a vegetação ficou cada vez mais insidiosa e se fizeram cada vez mais distantes os gritos dos pássaros e a algazarra dos macacos, e o mundo ficou triste para sempre. Os homens da expedição sentiram-se angustiados por suas recordações mais antigas naquele paraíso. Quase sem falar, avançaram como sonâmbulos por um universo de desassossego (García-Márquez, 1967/2019, p. 8).

O projeto genocida desenhado pelo Brazil para o Brasil finalmente parece estar chegando ao seu triste clímax. As imagens de uma terra inabitável estão dispostas em todos os lugares, a chuva cheira fumaça e a água tem cor sanguínea. Se em 1992 James Hillman, em seu "Cem anos de psicoterapia e o mundo está cada vez pior" (Hillman & Ventura, 1992/1995), anunciava-nos que a alma do mundo encontrava-se em um estado precário, gostaria de poder dizê-lo que agora a destruição parece ter tomado proporções astronômicas e irreversíveis. Se naquela época um dos nossos problemas eram os navios cargueiros que poluíam nossos rios com petróleo, hoje é a iminência de um céu desmoronando sobre nossas cabeças que nos rouba o sono.

Conforme visto em Kopenawa e Albert (2010/2015), a mitologia dos povos ameríndios convida-nos a olhar para a imagem de uma queda do céu enquanto retaliação à destruição realizada pelos invasores estrangeiros às suas terras e culturas pela colonização. Os processos coloniais consistem em mortes de mundos, genocídios das almas de "outrem" _ termo usado por Marco Antônio Valentim (2018), em seu "Extramundanidade e sobrenatureza" para referir-se aos povos não-eurocentrados, humanos ou não-humanos - e não cessaram mesmo após mais de 500 anos.

Em seu "Ideias para adiar o fim do mundo" (2019), Ailton Krenak enfatiza que destruímos nossa própria casa e que não fomos capazes de cuidar de nosso quintal. Em suma, não adianta tentar adiar o fim do mundo; este é um mundo em estado terminal. Desse modo, a grande questão parece-me ser a de assumir nosso lugar enquanto povo destruidor e, a partir disso, lograr consciência necessária para produzir novos mundos desde os retalhos que nos restam deste. Aqui, evoco o brilhante livro de Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski (2014) e pergunto: um outro fim de mundo é possível? Esta questão nos levará em direção ao perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro, 2018) e ao "Manifesto Antropófago" (1928 citado por Andrade, 2017).

 

Perspectivismo ameríndio e antropofagia

O vislumbre de uma antropologia pós-estrutural é proposto por Eduardo Viveiros de Castro (2018) em uma torção contemporânea do pensamento do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss em seu magnânimo "Tristes trópicos" (1955/1996). Desse modo, conforme visto em Viveiros de Castro (2018), a ideia de perspectivismo ameríndio consiste na recuperação histórico-cultural das cosmologias pertencentes aos povos humanos e outros humanos que possuem um modelo não-etnocêntrico de compreensão de mundo.

Conforme supracitado, entende-se que o perspectivismo ameríndio é atravessado pela ideia de uma ontologia antropofágica, ideia esta estruturante do movimento Modernista brasileiro, o qual, de acordo com Rezende (1993), visava a uma produção artística nacional a fim de resgatar nossas origens pré-coloniais. Tais pressupostos são sintetizados por Oswald de Andrade no "Manifesto Antropófago" (1928/2017, p. 49):

Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos.

de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Assim sendo, de acordo com Nodari (2019), a antropofagia situa-se na dobra do capital, visto que é um sistema que intenta dissolver os limites impostos pelo binarismo, controle de corpos e cerceamento de terras, bem como contornar os processos civilizatórios. Portanto, "consumir o consumo" (Oiticica, 1973, p. 150) trata-se de engendrar novos modos de povoamento e subsistência para além daqueles que nos são postos, assim como de produzir a diferença no corpo social, de modo que ela reluza "em todos seus poros estourados" (Artaud, 1947, p. 3).

Logo, ser nutrido por uma lógica antropofágica consiste em ser ingovernável, livrar-se das amarras do inconsciente colonial-capitalístico (Rolnik, 2018) no sentido de tornar-se uma esfera da insurreição, antes que o céu caia sobre nossas cabeças e o fim de mundo torne-se uma distopia inadiável (Albert & Kopenawa, 2010/2015; Krenak, 2019). A grande questão contemporânea parece-me ser a de fazer da fita Möbius, de Lygia Clark (1964/2015), uma espécie de teko-porã - termo de origem indígena para designar a sociedade do bem-viver, que se define por uma vida harmoniosa entre todos os habitantes da fauna e flora (Moraes, 2017).

 

A imaginação é um banquete

Das (des)leituras possíveis que atravessam-me o caminho, penso que é preciso agenciar novos modos não-europeus de compreensão do mundo. Por meio de páginas complexas e passos errantes, tropeço na ideia de que o perspectivismo ameríndio de Eduardo Viveiros de Castro (2018) nos fornece ricas imagens que podem ser vislumbradas sob o viés da psicologia arquetípica de James Hillman (1975/2010; 1983/2010).

A partir da ideia de personificação (Hillman, 1975/2010), pode-se dizer que a psicologia arquetípica dialoga de maneira ressonante com o perspectivismo ameríndio e a antropofagia, visto que as formas de pensar supracitadas operam de modos ressonantes por meio da produção da diferença e da descentralidade do "Eu". A partir disso, nesses campos do conhecimento, desloca-se a noção unilateral de autoconhecimento para o alterconhecimento.

Assim, se para Hillman (1975/2010) o logos é o suicídio da palavra, para Viveiros de Castro (2018) o genocídio da alma nativa é a incapacidade de criar novos fins de mundo. De acordo com Danowski e Viveiros de Castro (2014), no brilhante "Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins", o fim de mundo que se anuncia catastrófico começou no genocídio imaginal dos outros não-europeus, daqueles que não detinham a palavra padrão e que Viveiros de Castro (2017) chamou de involuntários da pátria.

Conforme abordado por Hillman (1975/2010), no primeiro capítulo de "Re-vendo a psicologia", a idade das luzes do pensamento europeu, compreendida entre os séculos XVII e XVIII, acabou por sacrificar nossa capacidade imaginal. E, como bem podemos ver na história, sacrificar o lúdico é versar perigosamente com domínios perversos. O genocídio mora na concretude ou, nas palavras de Hillman (1981, p. 11), "literalismo é a doença".

Ao versar com o perverso após o suicídio da palavra imaginada e o genocídio da palavra não europeia, recaímos nos processos coloniais e nas estranhas naus que carregavam catedrais jesuíticas em seus mastros com sua pretensa ideia de colonizar os indígenas. Ao ficarmos com a imagem das catedrais enquanto mastros, vemos a configuração da lógica europeia nos processos coloniais como uma nuvem sombria e escura, do que outrora era denominado Iluminismo. Algumas vezes, o que os livros de história falham em nos contar é que a luz da razão foi propagada sob o sangue e as cabeças daqueles que foram invadidos.

 

Brazil: lost in translation

A expressão "lost in translation" nos comunica sumariamente sobre buracos em nossa constituição histórico-cultural. Ser brasileiro é (des)pertencer a uma linguagem que há muito se perdeu ou jamais se autorizou ser concebida. A história do Brasil é uma história de pedaços que não se encaixam, como o "2666", de Roberto Bolaño (2004/2010), ou os desencontros de "O jogo da amarelinha" de Júlio Cortázar (1963/2019). O que quero dizer é que em algum momento a tradução de quem éramos perdeu-se em um dialeto eurocêntrico e dos nossos quintais. Antes maiores do que o mundo, restam ruínas.

Em seu "Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro", Eliane Brum (2019) retoma o pressuposto defendido pelo "Manifesto Antropófágo", de Oswald de Andrade (1928/2017). Contudo, em sua crítica pungente, a jornalista faz uma torção arrojada ao "Manifesto Antropófago", que foi um marco do movimento Modernistano país, deslocando o "tupi or not tupi, that's the question" (Andrade, 1928/2017, p. 49) para "tupi or not to be".

O que fazer diante do horror? Retomar a palavra, a que atravessa os muros. Enfrentar o desafio de construir uma narrativa, necessariamente polifônica, sobre o momento, em todos os espaços. Não desviando das contradições, para evitar que elas manchem a limpidez do discurso. Ao contrário. Abraçando-as, porque elas criam o discurso. O nome da coisa é a palavra que precisamos encontrar para inventar o Brasil. (Brum, 2016)

A partir dos "nomes das coisas", colocados por Brum (2016), temos a ideia de que não se trata de ser ou não tupi, mas sim de ser tupi para poder existir. Não ser tupi e ser brasileiro é apoiar as ontologias excludentes que nos deixam com a mira da arma em nossa testa o tempo todo. É como ser uma barata que tem idolatria pela fábrica de inseticidas.

O contexto sociopolítico que vivemos é em demasia kafkiano, no sentido de que há um controle absurdo da esfera pública, onde tudo que foge à norma é convocado a lugares de inumanidade - como os habitados por Gregor Samsa, em "A metamorfose" (Kafka, 1915/1997) e Josef K. em "O processo" (Kafka, 1925/1997). No Brasil, livrar-se do complexo eurocêntrico é viver sendo réu de uma dívida histórica que não foi criada por nós e, por fim, ser acusado de existência dolosa, crime que gera pena de morte perante o necroestado brasileiro.

 

Por que ser um involuntário da pátria?

O compêndio de propostas contidas nesse pequeno texto intentou expor o problema do eurocentrismo e introduzir um prelúdio de crítica descolonial na psicologia analítica. Para tal, partiu-se de um dos pressupostos enunciados por Fanon (1961/1979), que postula que a descolonização é um dos fenômenos potentes responsáveis por abrir as portas da alteridade e da existência de outridades.

Dito isso, optou-se pelo diálogo com a antropologia pós-estrutural, a literatura modernista brasileira e o perspectivismo ameríndio, visto que esses saberes dialogam de modo ressonante com a forma que o (em tradução literal "fazer-alma", Hillman, 1983/2010) tem se apresentado nos dias de hoje. Além disso, conforme observado nos trabalhos de Jung (1944/2011), individuar-se consiste em um constante processo de opus contra naturam, ou seja, a alma se faz em um registro de antítese.

Fazer-alma consiste no movimento de devir no mundo de modo único; achar um estilo que permita-nos povoar a solidão estética que existe no ato de se traduzir em outros (Hillman, 1975/2010). Logo, considerando que a psique consiste num sistema povoado de complexos com diferentes graus energéticos, isso faz com que sejamos compostos de modo plural (Jung 1960/2011a; 1960/2011b). Dessa forma, intenta-se operar um resgate à pedra angular sobre a qual a psicologia analítica foi erigida: a aposta na alteridade.

Fecho a explanação com uma provocação colocada por Eduardo Viveiros de Castro (2017, p. 493), em seu texto "Os involuntários da pátria":

Pois bem. Os índios foram e são os primeiros Involuntários da Pátria. Os povos indígenas originários viram cair-lhes sobre a cabeça uma "Pátria" que não pediram, e que só lhes trouxe morte, doença, humilhação, escravidão e despossessão. Nós aqui nos sentimos como os índios, como todos os indígenas do Brasil: como formando o enorme contingente de Involuntários da Pátria. Os involuntários de uma pátria que não queremos, de um governo (ou desgoverno) que não nos representa e nunca nos representou. Nunca ninguém os representou, àqueles que se sentem indígenas. Só nós mesmos podemos nos representar, ou talvez, só nós podemos dizer que representamos a terra - esta terra. Não a "nossa terra", mas a terra de onde somos, de quem somos. Somos os Involuntários da Pátria. Porque outra é a nossa vontade. Involuntários de todas as Pátrias, desertai-vos!

Parece-me claro que o movimento que se anuncia é o de subverter os ídolos em prol do direito de existir. Se, conforme visto em Ambra (2016), a boa psicanálise não teme criticar a si mesma, deixo aqui o convite para pensarmos juntos espaços que nos possibilitem re-fazermos esse movimento de célula revolucionária (Hillman & Ventura, 1995) no pensamento pós-junguiano, a fim de re-autorizar a vida dos Outros que nós mesmos roubamos por meio de todas as transgressões coloniais, sem ao menos pedir licença. Quem vamos?

 

Referências

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Recebido: 11 fev 2020
1a revisão: 20 abr 2020
Aprovado: 27 abr 2020
Aprovado para publicação: 24 jun 2020

 

 

Conflito de interesses: O autor declara não haver nenhum interesse profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a este manuscrito.
Minicurrículo: Pedro Henrique Alberton Perússolo - Psicólogo clínico. Graduado em psicologia pela Universidade Positivo no ano de 2019, atualmente é psicólogo clínico particular com enfoque na Psicologia Analítica Junguiana e pós-Junguiana sob o CRP 08/30573 na cidade de Curitiba/PR. Atualmente é membro do Departamento de Psicologia Analítica e Literatura da Associação Junguiana do Brasil (AJB) e colunista titular da Liga Junguiana.. E-mail: pedrohaperussolo@gmail.com
1 Agradeço a Carmen Lívia Parise por ter me apresentado essa terminologia, fundamental na tessitura conceitual deste trabalho.