ARTIGO DE REVISÃO
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2021.vol06.0005

 

Consciência dionisíaca: uma reação à neurose da cultura ocidental

 

Dionysian consciousness: a response to the neurosis of the western culture

 

Conciencia dionisíaca: una reacción a la neurosis de la cultura occidental

 

 

João CORÁ

Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR, Curitiba, PR, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo analisou a consciência dionisíaca que perpassa a psicologia analítica de Jung e seu posterior desdobramento na psicologia arquetípica de James Hillman. O método utilizado foi o de pesquisa de revisão bibliográfica, iniciando com o levamento das diversas narrativas sobre o Dionísio mitológico. Em seguida, abordou-se o arquétipo de Dionísio à luz da psicologia analítica de Jung. Então, a partir da visão da psicologia arquetípica de James Hillman, tratou-se da consciência dionisíaca, entendida como um retorno ao feminino, a fim de metaforizar ou novamente tornar imaginais aspectos projetados sobre o corpo e a matéria - causa da neurose da consciência ocidental. Dionísio é o deus portador do pathos, deus das emoções e ambivalências. Enquanto experiência arquetípica, o dionisíaco relaciona-se ao pathos, aos instintos, às emoções humanas, portanto, é uma via privilegiada de acesso ao inconsciente. A consciência dionisíaca integra em si a dimensão reprimida pela cultura ocidental do pathos humano - a matéria, o corpo - às emoções e aos aspectos relegados ao feminino, possibilitando o surgimento de uma nova consciência unificada e uma reação à neurose da cultura ocidental.

Descritores: Mitos, psicologia junguiana, arquétipos, consciência, neurose.


ABSTRACT

This article analyzed the Dionysian consciousness that runs through Jung's analytic psychology and its posterior unfolding in the archetypical psychology of James Hillman. The method used was the bibliographic review, starting with a research of diverse narratives about mythological Dionysius. After that, the Dionysius archetype was approached in the light of Jung's analytical psychology. And then, from the viewpoint of James Hillman's archetypical psychology it was approached the Dionysian consciousness, understood as a return to the feminine in order to metaphorize, or again, turn imaginal the aspects projected on the body and matter - cause of the neurosis of the western consciousness. Dionysius is the god bearer of pathos, god of the emotions and ambivalences. As an archetypical experience, the Dionysian relates to pathos, to the instincts, to human emotions, therefore, it is a privileged access pathway to the unconscious. Dionysian consciousness integrates in itself the dimension of the human pathos repressed by western culture- the matter and the body - to emotions and aspects relegated to the feminine, allowing for the emergence of a new, unified consciousness and a response to the neurosis of the western culture.

Descriptors: Myths, Jungian psychology, archetypes, conscience, neurosis.


RESUMEN

Este artículo analizó la consciencia dionisíaca que abarca la psicología analítica de Jung y su posterior despliegue en la psicología arquetípica de James Hillman. El método utilizado fue la pesquisa de revisión bibliográfica, comenzando con la investigación de las diversas narrativas sobre el Dionisio mitológico. Luego, se abordó el arquetipo de Dionisio a la luz da psicología analítica de Jung. Entonces, a partir de la visión de la psicología arquetípica de James Hillman, se trató dela consciencia dionisíaca, entendida como un retorno a lo femenino, para metaforizar o nuevamente tornar imaginales aspectos proyectados sobre el cuerpo y la materia - causa de la neurosis de la consciencia occidental. Dionisio es el dios portador del pathos, dios de las emociones y ambivalencias. Como experiencia arquetípica, lo dionisíaco se relaciona al pathos, a los instintos, a las emociones humanas, por lo tanto, es una vía de acceso privilegiada al inconsciente. La consciencia dionisíaca integra en sí la dimensión reprimida por la cultura occidental del pathos humano - la materia, el cuerpo - a las emociones y a los aspectos relegados a lo femenino, posibilitando el surgimiento de una nueva consciencia unificada y una reacción a la neurosis de la cultura occidental.

Descriptores: Mitos, psicología jungiana, arquétipos, conciencia, neurosis.


 

 

Introdução

A esfera arquetípica dionisíaca atravessa a realidade dos gregos. Sua imagem mitológica configura tanto o aspecto da iluminação racional do olimpiano Zeus, quanto o aspecto noturno e misterioso das sombras subterrâneas de Hades. Dionísio é a ponte entre luz e escuridão, o intermediário dos deuses olimpianos e dos deuses do subterrâneo. É por meio dele que adentramos os níveis mais profundos da psique. O conteúdo de sua imagem arquetípica contém em si mesmo a oposição consciência e inconsciente, possibilitando à imaginação conectar-se com aqueles complexos mais arcaicos do inconsciente coletivo. Nesse sentido, Dionísio insurge da oposição, dos paradoxos, sendo o deus fronteiriço das ambivalências (López-Pedraza, 2002).

Já que se encontra em uma posição intermediária, Dionísio torna-se o deus da obscuridade e do mistério. Nas narrativas míticas, é representado com várias faces, por meio de diversas perspectivas, como se tivesse múltiplas personalidades ou complexos. Entre as narrativas nas quais podemos encontrar o deus Dionísio, citamos "As Bacantes", de Eurípedes, e "A Ilíada", de Homero (trad. 2013), onde Dionísio é representado fugindo de Licurgo. Nos relatos órficos e homéricos, Dionísio é apresentado como menino; já em Eurípedes, aparece como um jovem de aparência andrógina. Em alguns contos, surge como um menino delicado, com traços femininos; em outros, é o marido ou o homem mais velho. Em algumas narrativas, é equiparado ao pai dos deuses, Zeus; nos mitos órficos, aparece como seu filho fruto da união com Perséfone, passando a ser chamado de Zeus ctônico.

A união de Zeus, pai do Olimpo, com Perséfone, a rainha do mudo subterrâneo (López-Pedraza, 2002), indica que Dionísio é, em si, uma unificação dos opostos, uma aproximação do mundo diurno de Zeus com o mundo noturno, invisível, das trevas e dos mortos, correspondente a Perséfone.

Outra característica proeminente da figura mítica de Dionísio é sua relação com o feminino e as mulheres, aspecto reprimido e negligenciado pela cultura ocidental devido a uma distorcida e tendenciosa interpretação do mito dionisíaco. Seu vínculo com o feminino aponta para a ligação de Dionísio com os aspectos do corpo, das emoções e do próprio inconsciente. Conhecido como Zeus das mulheres, das amas, das ninfas, da sua mãe Sêmele, ou seja: as mulheres estão presentes do início ao fim das narrativas dionisíacas (Kerenyi, 2015).

A cultura ocidental prevalentemente neurótica está basicamente fundada em um monomito racionalista que possui tendências regressivas e de repressão em relação a qualquer traço da consciência dionisíaca. O dionisíaco simboliza o próprio inconsciente, o núcleo emocional humano, o corpo e o aspecto feminino. Por outro lado, esses são precisamente os aspectos negligenciados pela neurose da cultura ocidental.

De acordo com Hillman (1984), o homem ocidental reprime Dionísio na medida em que possui uma tendência a fazer uma leitura do deus a partir de um academicismo excessivo, assim como por meio de uma associação de Dionísio a Wotã, o deus da destrutividade. Essa visão científica/natural adotada pelo Ocidente promove a repressão do feminino, da possibilidade de uma consciência dionisíaca, dos aspectos do corpo, das emoções, dos sentimentos e sensações. Esse tema será debatido durante todo o artigo, especialmente na terceira parte intitulada "O dionisíaco na psicologia arquetípica de James Hillman".

Na primeira parte do trabalho, "O Dionísio mitológico: quem é Dionísio?", abordaremos as narrativas míticas acerca de Dionísio e a forma como o deus é exposto nestas narrativas, destacando aspectos entendidos como cruciais para compreender as relações de Dionísio com o corpo, as emoções, os sentimentos e o próprio inconsciente fragmentado, tal como é chamado o deus do vinho.

Em um segundo momento, em "Dionísio na psicologia clássica de Jung", abordaremos a perspectiva da psicologia junguiana clássica sobre o dionisíaco, especialmente na obra "Psicologia e alquimia" (Jung, 1944/2011). Nessa parte, nos aproximaremos da perspectiva psicológica do mito e da importância do aspecto dionisíaco para a psique, enfatizando o dionisíaco como o arauto do retorno aos instintos, ao inconsciente, e os aspectos afetivos/emocionais da humanidade.

Por último, no subtópico intitulado "Dionísio na psicologia arquetípica de James Hillman", abordaremos a consciência dionisíaca que se faz necessária para o rompimento, abandono e superação da perspectiva neurótica da consciência ocidental e, ao mesmo tempo, para uma abertura à compreensão da psique através de uma perspectiva plural, múltipla, diversa e politeísta. Em outras palavras, a consciência dionisíaca como reação à neurose da consciência ocidental ou à unilateralidade de consciência, apontada como um adoecimento generalizado da cultura ocidental.

Porém, para promover a consciência dionisíaca, precisamos, primeiro, aprofundar a compreensão da figura mítica do deus Dionísio e de como ele se apresenta nas narrativas mitológicas, a fim de compreender suas qualidades, o modo como foi representado pelo imaginário dos antigos, seus epítetos, as fantasias que alimentam o mito dionisíaco e as ritualísticas ligadas ao deus, para, enfim, delinear as principais temáticas que configuram esse arquétipo.

 

O Dionísio mitológico: quem é Dionísio?

Nas narrativas mitológicas encontramos diversas perspectivas sobre quais seriam as origens de Dionísio. Em algumas delas, o pai de Dionísio é Zeus e a mãe, Perséfone, a rainha do mundo dos mortos. Outro nome dado ao pai de Dionísio é Zeus ctônico, isto é, o Zeus do mundo das trevas. Zeus seduz Perséfone, sua própria filha, e em um ato sombrio e incestuoso torna-se pai do subterrâneo Dionísio, que também será conhecido como Zagreu, nome atribuído igualmente a Zeus. Dessa forma, Dionísio é filho de uma relação obscura, na qual o Pai dos olimpianos, o iluminado Zeus, desceu ao subterrâneo, fisgado pela sua dimensão sombria, instintiva, tornando-se Zeus ctônico. Dionísio também recebe o epíteto ctônico, o subterrâneo (Kerenyi, 2015).

Nos rituais de mistério dionisíacos, Dionísio é representado por uma máscara ricamente adornada que simboliza o aspecto velado, escondido e obscuro do deus. Dionísio é o deus que permanece velado aos olhos da consciência, deus das profundezas do ser, que reside no âmago da natureza, que possui a própria potência da vida correndo através de si mesmo e, por isso, opõe-se aos olhares solares da razão ordenada, assim como à qualquer perspectiva da consciência diurna.

Em algumas imagens antigas, Dionísio aparece segurando o kantharos - jarro de vinho com grandes asas -, ocupando o lugar do deus do mundo do subterrâneo Hades. Dionísio também é conhecido como Senhor das Almas, o deus do subterrâneo, equiparando-se a Hades (Kerényi, 2015).

Nas narrativas míticas, Dionísio é seduzido, capturado e desmembrado pelos Titãs. O desmembramento de seu corpo é uma imagem arquetípica de tragédia e também a metáfora central da loucura, da fragmentação e do desmembramento simbólicos da psique. Dionísio é o deus fragmentado, dividido, cindido. Tal como o inconsciente se apresenta a partir de uma cisão com a dimensão da consciência, Dionísio aparece como a própria manifestação do inconsciente enquanto dimensão fragmentada e irracional, em outras palavras, o dionisíaco corresponde às dimensões emocional e inconsciente (López-Pedraza, 2002).

De acordo com López-Pedraza (2002), Eurípedes, dramaturgo grego, apresenta imagens dionisíacas e espantosamente cruéis da deusa Agave desmembrando seu filho Penteu. O desmembramento dionisíaco também é simbolizado pela imagem das mênades que, nas montanhas, esquartejam animais e crianças, devorando sua carne.

Acerca dos rituais dionisíacos podemos afirmar que aconteciam afastados da luz do mundo diurno que provinha da pólis grega. Tais rituais eram realizados nas montanhas e florestas, perto da natureza. Nesse sentido, para se aproximar da dimensão dionisíaca da alma, aquela dimensão profunda do inconsciente, foi necessário aos antigos afastar-se da cidade, da consciência e da razão, adentrando a escuridão e a profundeza das florestas, assim como adentrando o mundo subterrâneo das imagens do inconsciente (López-Pedraza, 2002).

Para Nietzsche (1872/1992), a experiência que atravessa o iniciado nos rituais dionisíacos corresponderia a uma experiência caótica, irracional, onde o iniciado prova do aniquilamento de sua individualidade e de uma reintegração ao uno primordial, por meio do embate com as profundezas da própria natureza.

Portanto, a imagem simbólica do ritual dionisíaco, que envolve devoramentos de animais e crianças, assim como sacrifícios, evoca aquela imagem mitológica do desmembramento do menino Dionísio. A intensa emocionalidade, os trágicos e dramáticos desfechos que perpassam a voracidade desses atos ritualísticos manifestam o pathos dionisíaco. Deve-se mencionar que, durante os rituais, os sujeitos envolvidos rasgavam a própria roupa como mais um sinal de que estavam sendo atravessados pela intensidade e profundidade das emoções dionisíacas.

O mito de Dionísio também simboliza o devoramento e a integração da divindade. Nesse mesmo sentido, temos como exemplo a simbologia da Eucaristia onde se come o corpo de Deus, tratando-se aqui, mais uma vez, do desmembramento e da ingestão da divindade. Essa simbologia arcaica e profunda da psique é uma imagem originária que está presente na própria natureza da humanidade. Tanto o canibalismo, quanto a caça e os rituais sacrificiais são componentes da pré-história da humanidade, ou seja, dos complexos originários.

Ao comentar sobre a figura de Dionísio em Homero (trad., 2013), López-Pedraza (2002) descreve Dionísio fugindo de Licurgo que, como os Titãs, abateu suas musas com a mesma brutalidade com a qual buscava desmembrá-lo. Nesse momento da literatura homérica, apreendemos, mais uma vez, o aspecto feminino dionisíaco sendo perseguido, destruído, reprimido, negado, simbolizando a repressão do feminino, da emocionalidade e do corpo. Dionísio em fuga busca refúgio no mar, no mais profundo oceano, onde Tétis o acolhe em sua covardia.

Diante da destruição do seu aspecto feminino, do desmembramento do seu corpo e da sua emocionalidade pelos Titãs, Dionísio busca refúgio no fundo do mar, na própria Grande Mãe, movendo-se regressivamente até o mais profundo inconsciente. Aterrorizado, Dionísio chora de medo e terror, suas lágrimas são mais um indício do envolvimento mitológico de Dionísio com a dimensão das emoções que, no mito, encontram-se reprimidas na profundeza oceânica do inconsciente (López-Pedraza, 2002).

López-Pedraza (2002) afirma que o processo dionisíaco da vida, tem seu teletai, o dionysoi telesthenai - o modo de iniciação nos mistérios dionisíacos - no embate do menino dionisíaco com o desmembramento titânico, sendo o próprio desmembramento uma condição necessária e o ritual de iniciação para um modo de vida dionisíaco.

Trata-se, portanto, de um drama inevitável que tem seu lugar na tenra infância. O menino Dionísio sente o horror diante da eminência do despedaçamento pelos Titãs. Tal experiência terrível está relacionada à imagem arquetípica da infância traumática que se refere à história arquetípica de todo ser humano. Pode-se pensar que o desmembramento de Dionísio é condição sine qua non para a realização da consciência dionisíaca, por meio da ruptura com as atitudes do ego unilateral.

De acordo com Hillman (1983/2011a), a neurose da consciência ocidental, tal como será profundamente discutida à frente, é caracterizada por uma unilateralidade do ego, uma visão unívoca que evita as perspectivas. Nesse sentido, o desmembramento de Dionísio, enquanto desmembramento desse ego que apenas reflete a si mesmo, é o primeiro passo para o surgimento de uma nova consciência plural, multifacetada, por meio de um rompimento com aquela atitude egóica e unilateral.

De acordo com López-Pedra (2002, p. 31), "as iniciações dionisíacas ocorrem ao longo de toda uma vida, a fim de propiciar, constantemente, o movimento psíquico". Isto é, o próprio movimento da psique requer o trauma instaurado pelo dionisíaco, uma vez que a transformação de um estado psíquico em outro requer um trauma, uma separação ou abandono de um estado anterior para a criação de uma nova consciência.

A iniciação dionisíaca começa na infância ou até mesmo antes, o nascimento talvez seja o primeiro desmembramento dionisíaco. Deve-se compreender que toda passagem de uma etapa a outra da vida - entre infância, puberdade, adolescência, juventude, maturidade e velhice - trata-se de uma iniciação que somente é possível devido à morte do antigo e uma abertura ao novo (López-Pedraza, 2002).

Nesse sentido, cada momento da vida exige um abandono ou uma libertação de certas convenções estabelecidas na fase anterior, daqueles aspectos que não são mais significativos e que permanecem em estado de nigredo, entendido como uma imagem alquímica para um estado da alma de pretejamento, com operações escuras, chamadas na linguagem alquímica de mortificatio, putrefatio, calcinatio etc. Esse estado da alma corresponde ao estado de rigidez e literalismo da consciência, sendo um estado de depressão, vagaroso, repetitivo, difícil, confuso, constrangido, angustiado, pessimista, niilista, em resumo, um estado de fixação e unilateralidade da consciência (Hillman, 1983/2011b).

Dessa forma, a iniciação dionisíaca é um desmembramento de uma consciência rígida e unilateral, um processo que se repete para a movimentação da energia psíquica, em oposição à paralisação rígida e unilateral da consciência.

A loucura dionisíaca pode ser fonte para a novas perspectivas e mundos, porém, ela não aponta para a criação de um mundo ordenado, mas sim, para uma experiência vital, a partir da qual se produz um renascimento psíquico. Em outras palavras, a fonte criadora dionisíaca possibilita uma nova experiência vital e psicológica da realidade, o sujeito retorna a ela sempre que uma transformação da psique se torna necessária (López-Pedraza, 2002).

A experiência arquetípica dionisíaca opera a partir de um movimento que oscila entre identificações com o todo coletivo e a criação da individualidade. A vivência dionisíaca é uma experiência de entrada no todo coletivo e posterior saída, com a criação de uma nova consciência de si, de um renascimento psíquico e de um novo modo de identificação. Portanto, trata-se de um processo circular e contínuo de desmembramentos consecutivos, pela diluição no todo coletivo, e posteriores criações de novas identificações egóicas, em um processo ad aeternum de morte e renascimento (López-Pedraza, 2002).

Dionísio e o pathos

Dionísio está ligado à patologia humana, ao pathos, raiz etimológica de paixão, patologia e emoção, e à dimensão emocional da psique. Para se pensar o lugar de importância que os afetos e as emoções têm na psique humana, é necessário relembrar que os complexos que constituem essa psique são "a imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional e, além disso, incompatível com as disposições ou atitude habitual da consciência" (Jung, 1934/2013, pp. 43-44, § 201).

Nesse sentido, as emoções são elementos nucleares para se pensar a vida psicológica, sentimentos, ideias, ações e humores conscientes. As emoções são os átomos da vida psíquica, todas as ideias conscientes estão "associadas e agrupadas por meio de um afeto" (Jung, 1907, p. 44 citado por Jacobi, 1990, p. 18).

De acordo com Jung (1934/2013, p. 43, § 200), "[os] complexos, com efeito, constituem as verdadeiras unidades vivas da psique inconsciente, cuja existência e constituição só podemos deduzir através deles". Nesse sentido, o inconsciente apenas é possível, assim como é constituído, devido aos complexos afetivos.

A constelação desses complexos com intensas cargas afetivas irrompe na consciência perturbando o estado psíquico. Os complexos afetam a memória, as intenções conscientes, gerando ações e pensamentos compulsivos. Sua carga afetiva opõe-se à atitude consciente, podendo causar dissociações de personalidade (Jung, 1934/2013).

Dionísio é o portador do pathos e das emoções, sendo assim, é o deus também das intensidades afetivas, possuindo o poder de enlouquecer os homens ou de libertá-los, podendo ser, como o complexo, a via regia de acesso ao inconsciente ou a causa de uma dissociação de personalidade.

Bakkheios corresponde à natureza que enlouquece os humanos e, por outro lado, lunios corresponde àquela atitude dionisíaca de libertação da insanidade. A duplicidade natural a Dionísio representa a polaridade da psique, seu conflito entre opostos. Dessa forma, a natureza de Dionísio é a mesma natureza da dinâmica psicológica (López-Pedraza, 2002).

A experiência dionisíaca presentifica emoções conflitivas e ambivalentes, em uma mistura de exaltação e repulsa, sagrado e horrível, pleno e impuro etc. Portanto, na própria natureza do dionisíaco há a presença de um conflito violento, patológico e ambivalente de emoções (López-Pedraza, 2002).

Se pudéssemos atribuir um domínio a Dionísio, diríamos que este é a dimensão patológica do humano, a dimensão das paixões e das emoções. Dionísio é o mais psiquiátrico dos deuses, ele é abertura para a patologia da alma e porta para o inconsciente, através de sua dimensão fundamentalmente emocional inerente, de sua aproximação mitológica com os complexos mais arcaicos da psique.

Por outro lado, as leituras psicológicas da modernidade afastam-se de uma leitura dionisíaca, pois, ao interpretar Dionísio de maneira intelectual, mais uma vez distanciam-se do aspecto emocional da psique. Dessa forma, a psicologia age apenas no sentido de reprimir Dionísio ou desmembrá-lo, tal como os Titãs, operacionalizando uma leitura sobre o dionisíaco, reprimindo-o, por uma perspectiva demasiadamente solar de uma consciência diurna, intelectual e racional.

A psicoterapia então liga-se a tendências da psicologia moderna e da medicina na criação de suas teorias, tornando-se excessivamente conceitual e intelectualizada, corroborando o negativo abandono da dimensão emocional, buscando fazer prevalecer uma dinâmica intelectual sobre a realidade psicológica. A dimensão dionisíaca apenas pode ser compreendida a partir da experiência, da sensibilidade, do corpo, ademais, do aprofundamento na dimensão inconsciente e emocional.

De acordo com López-Pedraza (2002), com a repressão do Dionísio emocional, aparece a repressão do corpo, assim como a repressão dos sentimentos, emoções, sensações, do próprio inconsciente e de tudo o que é denominado feminino. A psicologia moderna afasta-se do aspecto dionisíaco da psique. Esse distanciamento é também um afastamento das emoções e são elas que evocam Dionísio. Nesse sentido, a fim de pensarmos uma psicoterapia dionisíaca, devemos ter uma perspectiva sensível e emocional para alcançar as profundezas da alma.

López-Pedraza (2002) afirma que a cura é um atributo dionisíaco e que este somente pode ser alcançado quando acessamos o nível dionisíaco da psique, ou seja, quando atingimos aquela profundidade da psique que corresponde à dimensão do pathos - a dimensão das emoções. Somente uma abordagem psicológica que considera os aspectos dionisíacos emocionais, o corpo e a própria sensibilidade humana, seria capaz de operar a cura da neurose ocidental. Deve-se ter em mente que, como afirma Hillman (1983/2011a), a neurose da cultura ocidental está assentada em uma tendência racionalista, nominalista, dessa forma, somente a abordagem que estiver aberta para a dimensão das emoções corresponderá a uma consciência dionisíaca e, ao mesmo tempo, a uma reação à neurose da cultura.

 

Dionísio na psicologia clássica de Jung

Na psicologia clássica junguiana, o dionisíaco simboliza a dimensão inconsciente do ser humano, aparecendo em primeiro lugar como aquela dimensão reprimida pelo homem coletivo que passou pelo processo civilizatório, por isso, o dionisíaco carrega consigo as qualidades do ser natural, instintivo e proeminentemente afetivo e emocional.

Nas palavras de Bishop (1995), o homem comum da massa espera estar protegido atrás dos seus muros culturais, buscando escapar da experiência terrível, abissal e angustiante do dionisíaco. A repressão da vida instintual para Jung é a repressão do dionisíaco; seus mistérios pertencem ao caminho da esquerda e este é o caminho para baixo, para o inconsciente, para a história natural, para o instinto bestial que funda a existência humana.

O caminho para a esquerda, evidentemente, não conduz para cima, para o reino dos deuses e das ideias eternas, mas sim pra baixo, para a história natural, para os fundamentos instintivos animais do ser humano. Trata-se, por conseguinte, de um mistério dionisíaco na linguagem da Antiguidade (Jung, 1944/2011, p. 141, § 169).

Em linguagem psicológica, os ritos dionisíacos representam um modo de aproximação da vida inconsciente, um modo de experimentação e integração desses conteúdos inconscientes que são, em última instância, a parte obscura de nós mesmos, a nossa contraparte sombreada, que permanece desconhecida a nós mesmos. Ao mesmo tempo, o dionisíaco é a experiência responsável pelos processos simbólicos de morte e de renascimento da psique individual, possibilitando um processo contínuo de transmutação e transformação das imagens da vida.

Nos ritos primitivos de renovação, os ancestrais representam um papel significativo. [...] A retro identificação com os ancestrais humanos e animais significa, no plano psicológico, uma integração do inconsciente, um verdadeiro banho de renovação na fonte da vida, onde se é novamente peixe, isto é, inconsciente, como no sono, na embriaguez e na morte; daí o sono da incubação, a consagração orgiástica dionisíaca e a morte ritualística na iniciação (Jung, 1944/2011, pp. 141-144, § 171).

Os rituais misteriosos dionisíacos e toda a embriaguez que os envolve simbolizam, para o sujeito psicológico, uma dissolução de suas crenças, sentimentos, pensamentos, ideologias, dogmáticas religiosas ou filosóficas, hábitos, costumes, intenções, projetos. Tal dissolução da camada civilizatória ocorre a partir de um processo de incubação conhecido como sono incubador, simbolizando a dissolução na psique primordial, um retorno ao todo, ao uno primordial e ao caos indiferenciado. Dionísio é o deus do caos.

Esse processo, simbolizado pelo desmembramento de Dionísio, tal como narrado no mito e colocado em ato nos rituais de mistério dionisíacos, tem um caráter regressivo, mas, ao mesmo tempo, age como um prelúdio para uma nova significação do sujeito psicológico e do mundo, ou seja, o dionisíaco possibilita uma superação do antigo, uma renovação de valores pela aproximação da consciência e do inconsciente, isto é, de uma reconexão do homem com a vida instintual, com seus aspectos emocionais, seu pathos interior.

É importante ressaltar que Jung (1944/2011), em "Psicologia e alquimia", como se demonstrará a seguir, assevera a necessidade de um retorno ao dionisíaco, aos instintos, aos afetos e ao pathos, para se ter um encontro autêntico com o Self, ambos sendo estruturas primordiais da psique, constituídos por uma realidade interior própria e inconsciente, assim como irracionais aos olhos da consciência. Dessa forma, tanto a dimensão dionisíaca quanto o Self não podem ser compreendidos a partir da lógica, da razão humana, ou mesmo da religiosidade predominantemente cristã e apolínea, uma vez que estão para além do ego e possuem suas próprias leis, que devem ser compreendidas em si mesmas.

A religiosidade cristã reprime as emoções quando as define como aspectos de uma mundanidade inferior aos céus. O cristianismo expulsa o dionisíaco do espaço sagrado, julgando-o como pecado, excesso, tentação; seu pathos é recriminado como a origem do mal, aquilo que precisa ser evitado, suprimido, reprimido, controlado, vigiado. Nesse contexto, Dionísio é equiparado ao Diabo cristão, portanto, o receptáculo de tudo aquilo que pode levar o homem a sofrer, a causa de todos os males: a força vital em si mesma é vista como negativa, os instintos são reprimidos junto com o impulso natural do homem para o viver (Jung, 1944/2011, pp. 155-156, § 182).

Nesse sentido, para Jung, a experiência dionisíaca apresenta um caráter oposto às ideias metafísicas supremas que separam o humano do divino. A separatio humano e divino aponta para o primeiro como o portador de um pathos, considerado o cerne de tudo aquilo que lhe torna mundano, imperfeito, pecador. Por outro lado, a divindade, enquanto entidade para além do mundo, é caracterizada por ser perfeita, imutável, eterna, o summon bonum. Nesse contexto, a tarefa do homem é ser redimido pelo divino, alcançar aquelas ideias transcendentais, como peças faltantes de um quebra-cabeças prometido, que servem à criação de um homem perfeito, eterno, permanente, constante, virtuoso.

Por outro lado, tal perfeição é inalcançável para o humano, uma vez que sua experiência sempre será perpassada pela dimensão da angústia, da imperfeição, da falta. Nesse sentido, a experiência dionisíaca é necessária para a reconstrução do humano no centro da realidade, a partir de uma reunificação do aspecto espiritual com o aspecto instintivo do homem. São os rituais de mistérios dionisíacos que possibilitam um modo de encontro do intelecto humano com as emoções, isto é, uma aproximação com aqueles impulsos instintivos inconscientes que fazem parte da existência humana, na medida em que esta é considerada em sua totalidade e integridade. O pathos humano, apesar de ser indesejado e banido pela dogmática religiosa cristã, é o único modo de aproximação do verdadeiro Self.

Tendo em vista que a razão humana percebe o inconsciente como obscuro, sombrio, recôndito, profundo, então, o único modo de aproximação com essa dimensão da vida que permanece nas sombras se dá por meio da experiência dos mistérios dionisíacos. Jung afirma que nos rituais de mistério o homem busca a reconstrução do ser humano em sua integridade, sendo somente nesse solo sagrado do ritual, ou nesse temenos (palavra que se refere ao local sagrado), que haveria um espaço de germinação do homem, tornando possível a reconstrução de um homem integrado aos seus instintos, de onde surge um si-mesmo, representado pelo corpo diamantino (Jung, 1944/2011, p. 141, § 170).

Os ritos dionisíacos abarcam em sua simbologia a ideia de incubação por meio da consagração orgiástica, que representa uma morte simbólica e ritualística para a renovação e renascimento, simbolizando uma re-identificação com o que há de mais ancestral na humanidade e, ao mesmo tempo, uma integração com o inconsciente, "um verdadeiro banho de renovação na fonte da vida" (Jung, 1944/2011, p. 141, § 171). Nesse processo de aproximação e reencontro com seus instintos, com o que constitui a natureza do ser, o homem passa por um processo de transformação, um processo de transmutação de crenças, ideias, pensamentos, perspectivas e visões de mundo.

A experiência dionisíaca trata essencialmente de um momento de reconstrução do humano, processo simbolizado pela reconstituição do macaco no espaço sagrado (Jung, 1944/2011), ou seja, o reconhecimento do humano em sua integralidade, onde espírito e instinto estão unificados. O homem integral (Self) é também representado pelo restabelecimento do antropoide, do ser humano como realidade arcaica (Jung, 1944/2011) - um humano que se volta para sua própria história natural, para seus fundamentos instintivos e animais, em oposição com aquela atitude projetiva que costuma pensar sobre si-mesmo a partir de ideias e projeções.

O dionisíaco é também simbolizado pela Lótus, ou a Terra, que, por sua vez, também representa o aspecto inconsciente e feminino, como emocionalidade e afetividade. Por estar ligado aos aspectos do pathos humano é, ao mesmo tempo, visto como tendo um caráter maléfico e duvidoso, de natureza ambivalente, visto pela ética cristã como o próprio pecado, o herético, profano e obscuro (Jung, 1944/2011, pp. 163-165, § 192).

Nesse sentido, o dionisíaco na perspectiva da psicologia clássica de Jung aponta para os instintos, o corpo, as emoções e afetos. O próprio inconsciente é constituído de afeto, o pathos humano é a energia que preenche e mobiliza as imagens da psique. Dessa forma, o dionisíaco corresponde ao que há de mais fundamental no próprio tecido do inconsciente coletivo, o dionisíaco corresponde à valência afetiva da libido e promove a dinâmica do inconsciente.

O dionisíaco também é a porta de entrada para o inconsciente, seus rituais de mistério representam esse processo de aproximação do homem com seus aspectos inconscientes, sendo assim, o dionisíaco aponta para um momento de integração do homem com seu Self, uma vez que o dionisíaco constitui o afeto que perpassa o inconsciente, o pathos que atravessa e cria as imagens da alma.

Portanto, é Dionísio que torna possível o vislumbrar das profundezas da psique, é por sua sensibilidade que podemos apreender a realidade da alma humana em sua inteireza, não apenas a partir de ideias metafísicas. Isso significa que uma repressão do dionisíaco, do pathos e, em última instância, das emoções, corresponde a uma repressão ou a uma recusa dos aspectos inconscientes da humanidade, de sua contraparte sombria.

Por outro lado, como alerta Jung (1944/2011, p. 100, § 118): "por detrás dessas graciosas figuras, nem de longe se suspeita do mistério dionisíaco, do jogo dos sátiros com suas trágicas implicações, inclusive o estraçalhamento sangrento do deus feito animal". Na mesma passagem, referindo-se a Nietzsche (1844-1900),

Devemos levar a sério o que o filósofo alemão disse a respeito do deus - e mais ainda: tudo o que lhe aconteceu. Sem dúvida alguma, no estágio preliminar de sua doença fatal, já previra que a lúgubre sorte de Zagreu lhe estava destinada (Jung, 1944/2011, p. 100, § 118).

Com isso, Jung nos alerta que, apesar de Dionísio ser a porta para o inconsciente mais profundo, ele também é abertura para a loucura humana. Em outras palavras, "Dionísio significa o abismo da diluição passional, onde toda a singularidade humana se dissolve na divindade da alma animalesca primordial. Trata-se de uma experiência ao mesmo tempo abençoada e terrível" (Jung, 1944/2011, p. 100, § 118).

Nesse sentido, apesar de Dionísio ser o meio de aproximação da alma em seu estado de natureza, seu estado animalesco primitivo, ele, ao mesmo tempo, é uma experiência terrível de dissolução da singularidade e da individualidade humana, sendo também aquela força que pode desencadear horrores, destruição e aniquilamento, levando o homem à loucura.

 

Dionísio na psicologia arquetípica de James Hillman

Nesse tópico abordaremos a noção de consciência dionisíaca na perspectiva de James Hillman, fundador da psicologia arquetípica. No pensamento hillmaniano, Dionísio também está ligado ao inconsciente, às emoções e à materialidade, além de possuir profunda ligação com a natureza, com o livre fluxo da libido, a criança e o andrógino, comportando em si as polaridades masculina e feminina. Nesse sentido, Hillman vê na consciência dionisíaca uma possibilidade de superação da perspectiva monoteísta dentro da psicologia moderna, criando espaço para uma abordagem que aceita a psique como uma estrutura com múltiplos centros, múltiplas almas e deuses, abrindo caminho para uma psicologia politeísta.

Em um segundo momento neste tópico, será exposta a ideia proposta por Hillman a respeito da neurose da cultura ocidental e ao fato desta última ter suas raízes em uma linguagem unilateral da consciência. Depois, poderemos compreender como, no interior da neurose da cultura ocidental, Jung principiou um movimento de desliteralização, através de uma linguagem metafórica, e como, posteriormente, James Hillman encontraria na linguagem imaginal, na linguagem mitopoética, uma superação daquela linguagem neurótica ocidental.

Por último, apreenderemos como a linguagem imaginal hillmaniana, quando considerada em toda a sua dimensão, somente é possível por meio da consciência dionisíaca, já que esta propõe um retorno à sensibilidade, ao corpo e à matéria, a fim de almar novamente o mundo.

A perspectiva politeísta dionisíaca e a psicologia monoteísta moderna

De acordo com Hillman (1984), Dionísio é o deus das mulheres, seu culto é uma prerrogativa feminina, ele está profundamente ligado ao feminino e, portanto, ao inconsciente, à terra, às emoções, à sensibilidade e à matéria. Em um de seus epítetos, também aparece como homem e mulher (Hillman, 1984, p. 228) em uma só pessoa, ou seja, andrógino.

A figura andrógina de Dionísio significa também uma consciência andrógina que comporta em si as polaridades em oposição. A consciência dionisíaca implica a priori uma unificação dos opostos, possibilitando assim uma abertura para a polissemia e as diversas perspectivas de alma (Hillman, 1984).

Outro aspecto da consciência dionisíaca é sua profunda ligação com o natural, com o livre fluxo da libido e das fantasias da psique. Nesse sentido, a consciência dionisíaca opõe-se ao pensamento analítico, reducionista e mecanicista, opondo-se ainda ao excesso de divisões e de definições proposto por este.

Deve-se dar a devida importância à semelhança da consciência dionisíaca com a consciência da criança. O deus natural Dionísio, também chamado de o indiviso, assim como a criança, não divide ou parcela a realidade, não opera nenhum tipo de dualismo ou cisão psíquica. A perspectiva da criança que perpassa a consciência dionisíaca possibilita uma visão do todo que se opõe a uma visão unilateral, reduzida ou parcial. A perspectiva dionisíaca procura apreender a experiência psicológica em sua totalidade, em sua própria realidade, sem distorções, cisões, divisões, reduções ou mascaramentos (Hillman, 1984).

Nesse sentido, ao se ater à experiência psicológica em si mesma, a invocação de Dionísio abandona aquela perspectiva monoteísta da psicologia que busca reduzir a alma a teorias ou conceitos. A consciência dionisíaca considera que a psique é uma estrutura com múltiplos deuses e experiências possíveis, uma multiplicidade de centros, um politeísmo psicológico.

A consciência monoteísta tem como ponto de partida a psique egocêntrica, isto é, toma o ego como centro da consciência. Essa perspectiva contribui para uma visão unilateral e prejudicial à compreensão da alma em suas diversas facetas. A psicologia arquetípica, munida da consciência dionisíaca, desloca o ego do centro da perspectiva e instaura uma realidade psicológica múltipla, com diversas figuras divinas que governam o mundo arquetípico e o mundo dos fenômenos empíricos. Hillman segue os passos de Jung quando este afirmava que o si-mesmo possui várias instâncias arquetípicas e que a psique é uma estrutura de múltiplas centelhas (Hillman, 1984).

Pode-se refletir que também há uma estrutura politeísta no modo como Jung considera a psique. Para ele, a psique possui o caráter de ser dissociada em diversos aspectos parciais ou complexos, apontando assim para uma psique composta de vários fragmentos que se dá em oposição à perspectiva de uma psique unitária, perfeita ou unificada em um todo coerente. De acordo com Jung, a crença de que um mesmo indivíduo possui várias almas dentro de si já existia entre os povos da antiguidade (Jung, 1934/2013).

Dessa forma, a perspectiva politeísta e plural da psique somente se dá pela realização de uma nova perspectiva: a dionisíaca. Isso significa que a consciência dionisíaca evoca o plural, o múltiplo e os diversos centros arquetípicos. Desse modo, a consciência dionisíaca possibilita a abertura para as diversidades de estilos dos deuses, assim como aponta a polissemia de significados como linguagem da alma.

 

A neurose da cultura ocidental e a repressão de Dionísio

A consciência dionisíaca e a linguagem metafórica/imaginal

De acordo com as ideias de Hillman (1983/2011a), a cultura ocidental é uma cultura que está neuroticamente adoecida. Entre as principais características desse adoecimento cultural está sua linguagem unilateral de consciência que se manifesta por meio do nominalismo e do racionalismo. A neurose ocidental encontra suas causas em uma consciência excessivamente apolínea repleta de conceitos diurnos, objetivos e compactos, culminando assim na própria morte da alma pelo reducionismo de seu aspecto vital.

Nesse sentido, o lócus da neurose ocidental é a linguagem conceitual explicativa, que afirma o porquê em oposição a uma compreensão do fenômeno através de seu caráter imaginal. Dessa forma, a linguagem ocidental é conceitual e "nega a substância e a fé em suas palavras" (Hillman, 1983/2011b, p. 32), tratando-se daquele estilo retórico do ego que literaliza seus conceitos, sem possuir mais aquela consciência metafórica do como se, que opera a distinção entre as palavras e as coisas que elas descrevem (Hillman, 1983/2011a).

Dentro dessa cultura neurótica, Freud e Jung surgem como dois expoentes que buscam operar uma desliteralização cultural através de uma linguagem metafórica e não-neurótica, uma linguagem que não perde de vista que o conceito possui um fundo metafórico. A linguagem imaginal é formada pela palavra-arte, por palavras almadas que surgem em oposição a conceitos puramente abstratos. A linguagem metafórica é uma tentativa de superação da neurose da cultura pela recriação de uma linguagem viva que promove o cultivo da alma (Hillman, 1983/2011a,1988).

A linguagem imaginal aproxima-se daquilo que Jung (1912/1986) conceitua, em "Símbolos da transformação", como pensamento-fantasia, ou seja, um tipo de pensamento que se opõe ao pensamento dirigido, que, por sua vez, é caracterizado por ser linguístico e orientado para a adaptação externa, um pensamento orientado pelo outro e pela cultura. Pelo contrário, o pensamento-fantasia efetua uma interpretação simbólica, abandonando uma postura que encara a psique como objetiva, concreta, causal ou lógica; afasta-se também de um tipo de pensar fundamentado no outro e no coletivo. O pensamento-fantasia aproxima a subjetividade dos sistemas de fantasias que subjazem à realidade consciente e que existem nas camadas mais profundas do inconsciente, possibilitando um pensamento simbólico (Jung, 1912/1986).

A linguagem imaginal é mitopoética. Trata-se, em essência, de uma linguagem criadora e fundamentada na poiesis (Heidegger, 1977). Nesse sentido, a linguagem imaginal afasta-se de conceitos e generalizações, aproximando-se da própria imagem sensorial da alma, tendo como finalidade a desliteralização e a dessubstanciação da consciência neurótica, por meio da aproximação da imagem tal como ela se dá, a fim de rematerializar a psique (Hillman, 1983/2011b).

Ora, é a consciência dionisíaca aquela que torna possível esse retorno à sensibilidade, ao corpo e à matéria, a fim de almar novamente o mundo. Nesse sentido, a linguagem imaginal e metafórica é uma qualidade da própria consciência dionisíaca como apontado por Hillman (1984).

A repressão do dionisíaco pela cultura moderna ocidental

A psicologia ocidental, afetada pelo adoecimento neurótico da cultura, é atravessada por um viés psiquiátrico do século XIX que distorce e reprime o dionisíaco da psique. A perspectiva psiquiátrica interpreta o pathos dionisíaco como diretamente ligado à loucura e à falta de razão, reprimindo aquela dimensão dionisíaco relacionada à vitalidade, à sexualidade, ao corpo, às emoções e ao próprio feminino (Hillman, 1984).

A repressão da consciência dionisíaca ocorre por razões socioculturais. A cultura ocidental possui uma consciência racionalista e demasiadamente apolínea, incapaz de apreender em si as qualidades da imaginação e da alma, substituindo essa perspectiva almada por um diagnóstico científico-natural da psiquiatria, da sociologia e demais ciências (Hillman, 1984).

Dessa forma, a consciência ocidental não proporciona uma iniciação adequada em nossa sociedade da consciência dionisíaca. O modo de acesso à dimensão da emotividade, dos afetos e do próprio inconsciente, se dá apenas de maneira indireta, através de seus aspectos sombrios, "através de Wotan e do Diabo do cristianismo" (Hillman, 1984, p. 240). Falta-nos, portanto, a própria consciência dionisíaca e a consciência da vida desse arquétipo, uma vez que "não resta nada além dos nomina laicos da psiquiatria e da sociologia comparada" (Hillman, 1984, p. 240).

Para Hillman (1984) devemos desaprender tudo o que já aprendemos sobre o dionisíaco com base em autores renascentistas e naquela visão ocidental que associa Dionísio à loucura, à destrutividade do deus Wotan, assim como ao Diabo cristão. Somente dessa forma principia-se em nós uma mudança de visada que abre espaço para a perspectiva que olha através dos eventos e reconhece seu fluxo vital. A consciência dionisíaca torna os eventos almados.

Dionísio também é representado pela força vital da própria natureza viva Zoe. A consciência dionisíaca, aliada à força vital de Zoe, aponta para uma abertura desse estilo de consciência às ambivalências, às polaridades e às oposições presentes na própria natureza. Nesse sentido, o dionisíaco é uma força vital que comporta em si mesmo as polaridades e oposições da vida (Hillman, 1984).

Portanto, Dionísio provém da fonte vital onde se encontram os instintos, as emoções e impulsos e, por isso, é concebido a partir das polaridades, oposições e ambivalências presentes naquela dimensão. Por ser ligado à dimensão inconsciente, Dionísio opõe-se frontalmente aos outros deuses olimpianos que estão mais próximos dos aspectos da inteligência e da razão, opondo-se também a qualquer tentativa de classificação ou explicação dos conteúdos psíquicos. Pode-se notar que está intrínseco na própria natureza dionisíaca aquela divisão clássica ocidental entre emoção e razão, na qual Dionísio aparece inferiorizado como não-inteligente, inconsciente, desordenado, irracional etc. (Hillman, 1984).

Desconsidera-se que, na realidade, o dionisíaco é um estilo de consciência que se aproxima da dimensão humana do inconsciente e, com essa aproximação, supera o racionalismo da consciência ocidental e também a neurose da cultura.

O dionisíaco dá espaço para aquele discurso que apreende o vivo, a vitalidade e, portanto, a experiência em seu fluxo natural. Nesse caso, a consciência dionisíaca supera o literalismo e a tendência da consciência ocidental à unilateralidade, uma vez que parte da perspectiva da própria alma, da perspectiva do inconsciente, em oposição ao discurso retórico e sem alma da consciência ocidental.

A consciência dionisíaca utiliza-se da linguagem imaginal, da linguagem do próprio inconsciente, transportando a personalidade do reino da consciência para o reino imaginal do como se, abrindo uma perspectiva politeísta da psique. É apenas por meio dessa reabertura ao inconsciente, que se dá através da consciência dionisíaca, que é possível uma reação à consciência neurótica ocidental, uma superação da unilateralidade aprisionada em um racionalismo conceitual e uma reaproximação com a perspectiva metafórica da psique (Hillman, 1983/2011a).

 

Considerações finais

De acordo com Hillman (1984), a neurose ocidental é consequência de uma visão identificada com os processos históricos e culturais, uma perspectiva que parte do coletivo e abandona o mito visto de dentro, que deixa de lado a alma do mito. Por outro lado, a consciência dionisíaca possibilita a concepção de uma atitude egóica não unilateral, que possui em si a junção dos opostos feminino e masculino, uma consciência na qual se realiza a coniunctio (Edinger, 1990) alquímica de Jung.

Sobre a consciência dionisíaca, Hillman afirma que:

Significa uma reinvestidura dos aspectos femininos dos quais fomos desnudados e com os quais identificamos a fêmea. Nossa consciência poderia então começar a se libertar de sua prolongada identificação apenas com as qualidades masculinas e com aquela linha de pensamento que de "Apolo", passando por Aristóteles e Galeno, chega-se a Freud e Moebius (Hillman, 1984, p. 246).

Nas palavras de Hillman (1984, p. 247) "esta estrutura conjunta é o que o dominante arquetípico de Dionísio oferece para uma consciência unificada e uma imagem de mundo unitária".

A consciência dionisíaca opera um retorno para aqueles aspectos do feminino até então reprimidos na consciência ocidental neurótica, sendo o meio para a construção de uma consciência unificada e de uma imagem unitária de mundo. A consciência dionisíaca age no sentido de um retorno à natureza, a Zoe, considerando mais uma vez a dimensão dos afetos, da própria dinâmica inconsciente e da alma. A consciência ocidental deve seu adoecimento a esse afastamento da dimensão emocional que a consciência dionisíaca retoma.

Outro aspecto relevante da consciência dionisíaca é a dimensão da morte e do renascimento, também presente nesse novo estilo de consciência.

De acordo com Hillman (1984, p. 245), "Dionísio é sempre destruído de novo e sempre renasce; e isto não ocorre numa sequência. Um aspecto da vida é lacerado para que um outro aspecto, o psíquico, chamado 'morte', possa se relacionar com a onisciência".

Se por um lado, a neurose da consciência ocidental é caracterizada por uma unilateralidade, por uma rigidez de pensamento e perspectiva, por outro, a consciência dionisíaca opera constantemente mudanças e transformações, sempre quebrando vasos (Hillman, 1983/2011a) de antigas perspectivas, a fim de criar novas, em um processo de transmutação a cada instante.

Por fim, a consciência dionisíaca possibilita uma reintregração na psique daquilo que foi outrora projetado e atribuído ao corpo feminino, isto é, reintegrar à consciência psicológica o feminino projetado no corpo das mulheres, seu aspecto material, as emoções e sensações, em última instância, tudo o que até agora foi projetado e lacrado no corpo e colocado em oposição à alma. A consciência dionisíaca busca almar a matéria e substancializar a alma, através de uma nova atitude de consciência diante do feminino.

Nas palavras de Hillman (1984, p. 247), essa seria a redenção da consciência ocidental moderna apontada por Jung. "É esta a redenção do que Jung chamou 'a terra, obscuridade, o lado abissal do homem corpóreo, com suas paixões animais e sua natureza instintiva e [...] 'matéria' em geral" (Hillman, 1984, p. 247).

Ora, a consciência dionisíaca apreende aquelas qualidades entendidas até agora como pertencentes apenas ao corpo, a fim de torná-las psicológicas novamente. A consciência dionisíaca é consequência de um processo de assimilação desses aspectos negados do feminino, tornando possível uma superação daquela perspectiva monológica, unilateral, racionalista, literalista, nominalista e neurótica da consciência ocidental. A consciência dionisíaca integra em si mesma a dimensão da racionalidade e das emoções, adentrando uma abordagem não-dualista e unificadora dos opostos consciente e inconsciente, reinserindo na existência a dimensão das emoções, sensações e sentimentos, tornando novamente o mundo almado.

A fim de almar novamente o mundo, a consciência dionisíaca transporta-nos ao reino do imaginal, onde somos convidados a ultrapassar aquela visão de mundo pautada em uma representação objetiva e concreta da realidade. Em outras palavras, a consciência dionisíaca em seu caráter metafórico possibilita uma reaproximação da alma com a matéria, uma vez que sua linguagem imaginal reimagina a perspectiva literal do mundo concreto, compreendendo que a própria matéria é fantasia, tornando a experiência sensível almada. A intenção da consciência dionisíaca é almar novamente a matéria, extrair dela aquilo que já está ali presente, seu sentido profundo que aguarda para ser desvelado. A consciência dionisíaca torna o mundo um vale de fazer alma (Hillman, 2010).

 

Referências

Bishop, P. (1995). The Dionysian self: C. G. Jung's reception of Friedrich Nietzsche. Berlin: De Gruyter. https://doi.org/10.1515/9783110811704.

Edinger, E. (1990). Coniunctio. In Anatomia da psique (pp. 227-248). São Paulo: Cultrix.

Heidegger, M. (1977). A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70.

Hillman, J. (1984). O mito da análise: três ensaios de psicologia arquetípica. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Hillman, J. (1988). Cultivo da alma. In Psicologia arquetípica: um breve relato (pp. 54-57). São Paulo: Cultrix.

Hillman, J. (2010) Introdução. In Re-vendo a psicologia (pp. 25-38). Petrópolis, RJ: Editora Vozes.

Hillman, J. (2011a). Rudimentos. In Psicologia alquímica (pp. 34-82). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1983).

Hillman, J. (2011b). A sedução do preto. In Psicologia alquímica (pp. 126-146). RJ, Petrópolis: Editora Vozes. (Trabalho original publicado em 1983).

Jacobi, J. (1990). Complexo. In Complexo, arquétipo, símbolo na psicologia de C. G. Jung (pp. 16-36). São Paulo: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1957).

Jung, C. G. (2011). Símbolos oníricos do processo de individuação. In Psicologia e alquimia (OC, Vol. XII, pp. 51-242). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1944).

Jung, C. G. (1986). As duas formas de pensamento. In Símbolos da transformação (OC, Vol. V, pp. 6-32). Petrópolis, RJ: Editora Vozes. (Trabalho original publicado em 1912).

Jung, C. G. (2013). Considerações gerais sobre a teoria dos complexos. In A natureza da psique (OC, Vol. VIII/2, Capítulo 3, pp. 39-52). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1934).

Kerényi, K. (2015). A mitologia dos gregos: a história dos deuses e dos homens (Vol. 1). Rio de Janeiro: Vozes.

López-Pedraza, R. (2002). Dioniso no exílio: sobre a repressão da emoção e do corpo. São Paulo: Paulus.

Nietzsche, F. (1992). O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1872).

 

 

Recebido: 16 dez 2020
1a revisão: 05 fev 2021
Aprovado: 11 maio 2021
Aprovado para publicação: 10 jun 2021

 

 

 Conflito de interesses: O autor declara não haver nenhum interesse profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a este manuscrito.
 Minicurrículo: João Luís Corá Silva - Mestrando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR e em Psicologia Clínica pela Universidade Federal do Paraná - UFPR; especialização em "Psicologia Analítica: Teoria e Prática" pela PUC-PR; graduação em Psicologia pela PUC-PR. Psicólogo clínico. Curitiba/PR, Brasil. E-mail: joao_luis_cora@hotmail.com