EDITORIAL
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2021.vol06.0001

 

A casa e a pandemia

 

The house and the pandemic

 

La casa y la pandemia

 

 

No ano de 2020 muitas de nossas concepções e certezas foram quebradas. Se nos dissessem que atenderíamos a grande maioria de nossos pacientes de modo on-line - modalidade existente, mas restrita a pessoas que estivessem em outra cidade ou país -, na maior parte dos casos, diríamos que seria impossível, que comprometeria o trabalho, o setting. Outras tantas práticas também foram descontruídas, como a necessidade de cruzar a cidade para participar de reuniões presenciais. Já tínhamos à disposição a tecnologia virtual, porém, a maneira tradicional de operar ainda se impunha.

Segundo Hobsbawm (1983/2020), uma nova tradição ou costume se configura quando mudanças de grandes proporções ocorrem, necessitando de novas práticas sociais. Os períodos de transformações criam vazios que precisam ser preenchidos pela reformulação das tradições que moldam uma coesão social. E não há dúvida de que as mudanças que aconteceram em 2020 foram de grandes proporções e em escala mundial. Não é pouca coisa.

Se há um legado certo da pandemia do coronavírus SARS-CoV-2 é o home office, principalmente para atividades intelectuais e comerciais. No início da pandemia, quem pôde trabalhar de casa, sentiu que economizaria muitas horas de trânsito. Estávamos com saudades do habitar, pois habitar exige tempo, e nosso modelo de casa dormitório estava nos afastando desta vivência. Havia muitas ofertas de lives, shows e atividades culturais e parecia que tudo poderia ser aproveitado.

A incorporação do teletrabalho trouxe, no entanto, questões difíceis de lidar. Logo pudemos ver que a velocidade costumeira invadiu nossa sala e em pouco tempo estávamos atolados de demandas e tarefas, sem marcadores externos, como o espaço físico que delimita onde acaba e onde começa uma atividade. Agora estava - e está - tudo reunido no mesmo espaço, cabendo a nós, internamente, delimitar o tempo das coisas. A casa, como uma grande mãe, acolheu dentro dela todas as atividades que eram realizadas fora. Mas vivemos a época do capital, da produtividade e do desempenho, como nos lembra o filósofo B. C. Han (2016), e a demanda da performance tal qual era fora de casa estabeleceu-se dentro da moradia.

Aos poucos as pessoas foram percebendo que seria importante estabelecer uma curadoria, prioridades. Como perdemos as referências exteriores de organização, as escolhas pessoais fizeram-se necessárias para sustentar o tempo interior, para fazer frente ao excesso de extroversão, ao tudo igual para todos, que é um efeito colateral da globalização. No caso deste coronavírus, tem-se a impressão de que ele também globalizou aqueles que atinge, sem distinção de nacionalidade, idade, classe social ou etnia.

É importante aprendermos a cuidar de nossas escolhas, de nossa casa, do nosso planeta. O levantamento de fronteiras entre os países foi necessário como medida de contenção da contaminação, mas precisamos nos lembrar de que não são as fronteiras do mal uso do poder que devem ser levantadas, mas as fronteiras da ética, do respeito pela ciência e da proteção ao meio ambiente.

Se o coronavírus é um símbolo, qual ou quais os arquétipos que ele veicula para nós? Destruição? Fronteiras? Morte?

Héstia, a deusa grega que é uma imagem arquetípica da casa, uma deusa introvertida, subitamente estava em todas as lives e palestras. A casa de todos, da qual é representante, passou a ser exposta em todos os computadores, em reuniões e aulas. Héstia extrovertendo. Hermes, por sua vez, o deus dos deslocamentos, começou a trabalhar de casa, em uma clara inversão da energia psíquica.

São dois deuses dividindo o mesmo território e sabe-se que os deuses não gostam que seus lugares sejam ameaçados. Porém, esse eixo introversão-extroversão tornou-se protagonista. A tela de Magritte (Figura 1) me lembra a ideia de Hermes e Héstia dividindo o mesmo espaço e, como diria o axioma da psicologia arquetípica: fique com a imagem.

 

Figura 1. O tempo transfixado, por René Magritte, 1938.

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Time_Transfixed.jpg

 

Esse momento único que estamos vivendo é um terreno fértil para temas que podem ser estudados e analisados a partir da psicologia analítica. Por isso, fica aqui nosso convite para que você colabore com a Self, publicação científica do IJUSP que está sempre aberta a receber submissões. Você encontra mais informações sobre a revista e sobre como enviar trabalhos em: https://self.ijusp.org.br/self/about/submissions

Paula Serafim DARÉ

Editora Científica

 

Referências

Han, B-C. (2016). Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes.

Hobsbawm, E. (2020). Introdução: a invenção das tradições. In E. Hobsbawn, & T. Ranger (Orgs.), A invenção das tradições (pp. 7-24). Rio de Janeiro: Paz e Terra. (Trabalho original publicado em 1983).