ARTIGO DE REFLEXÃO
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2021.vol06.0008

 

Mitologia grega e psicologia arquetípica: fontes para compreensão dos ecos e reflexos da pandemia

 

Greek Mythology and archetypal psychology: sources for understanding the echoes and reflexes of the pandemic

 

Mitología griega y psicología arquetípica: fuentes para comprender los ecos y reflejos de la pandemia

 

 

Yedda H. R. MACDONALD

São Paulo, SP, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo analisou os ecos e reflexos simbólicos da pandemia, à luz da psicologia analítica e da psicologia arquetípica e entrelaçando os conceitos de unus mundus, animismo e de perspectiva imaginal com os mitos gregos. A partir das histórias de Eco, Narciso, Ártemis, Héstia, Hermes e Pan, o artigo discutiu os ecos e reflexos da pandemia em uma sociedade narcisista, em uma era de medos generalizados e pânico, com a deterioração do meio ambiente, o uso excessivo de redes sociais e da tecnologia, a necessidade de isolamento social e de retorno à casa. O trabalho também abordou o que os gregos chamavam de hybris - a soberba humana de se acreditar acima dos deuses - como mal de uma era desconectada do coletivo e da natureza. Por fim, o artigo destaca a importância de uma educação para ver e compreender as imagens internas e externas e propõe um fazer alma como parte da recuperação da alma do mundo.

Descritores Psicologia Analítica, Animismo, Mitologia Grega.


ABSTRACT

This article analyzed the symbolic echoes and reflexes of the pandemic in the light of analytic and archetypal psychology and interweaving concepts of unus mundus, animism and imaginal perspective with Greek myths. From the stories of Echo, Narcissus, Artemisia, Hestia, Hermes and Pan, the article discussed the echoes and reflexes of the pandemic on a narcissist society, in a era of generalized fears and panic, with the deterioration of the environment, the excessive use of social networks and technology, the need for social isolation and the return home. The work also approached what Greeks used to call hybris - human arrogance of believing themselves to be above the gods - as the evil of an era disconnected from the collective and nature. Finally, the article highlights the importance of an education for seeing and understanding the internal and external images and proposes a soul-making as part of the recovery of the world's soul.

Descriptors Analytical Psychotherapy; Animis; Greek Mythology


RESUMEN

Este artículo analizó los ecos y reflejos simbólicos de la pandemia, a la luz de las psicologías analítica y arquetípica, y entrelazando los conceptos de unus mundus, animismo y de perspectiva imaginal con los mitos griegos. A partir de las historias de Eco, Narciso, Artemisa, Hestia, Hermes y Pan, el artículo discutió los ecos y reflejos de la pandemia en una sociedad narcisista, en una era de miedos generalizados y pánico, con la deterioración del medio ambiente, el uso excesivo de redes sociales y de la tecnología, la necesidad de aislamiento social y de retorno a casa. El trabajo también abordó lo que los griegos solían llamar hybris - la soberbia humana de creerse superiores a los dioses - como mal de una era desconectada de lo colectivo y de la naturaleza. finalmente, el artículo destaca la importancia de una educación para ver y comprender las imágenes internas y externas y propone un hacer alma como parte de la recuperación del alma del mundo.

Descriptores Psicoterapia Analitica; Animismo; Mitología Griega.


 

 

Os objetos da terra nos devolvem o eco de nossa promessa de energia. O trabalho da matéria, desde que devolvamos todo seu onirismo, desperta em nós um narcisismo de nossa coragem (Gaston Bachelard, citado por Ferreira, 2008, p. 134).

 

Pandemias

O mundo adoeceu ou já estava doente com seu capitalismo desenfreado, consumismo, exigências performáticas, retrocessos e radicalismos políticos, racismo, machismo, ecologia em colapso? A lista de sintomas é infinita. Já estávamos no limite da soberba do nosso lugar no mundo e a pandemia foi a resposta, a doença incubada que eclodiu e retirou-nos dos cenários que achávamos ter dominado. Os gregos chamam isso de hybris, uma falsa ilusão e arrogância dos homens de se acharem acima dos deuses; uma desmedida humana, uma onipotência que, pela visão mitológica grega, gera reações dos deuses para colocar os humanos em seu lugar e tamanho. Obviamente, estamos falando aqui de deuses como metáforas, daquilo que muitos estudiosos como Carl Gustav Jung, James Hillman, Fritjof Capra, James Lovelock, dentre outros, falam sobre leis compensatórias da natureza, da psique, a noção de que fazemos parte de uma teia interligada chamada Vida, Planeta e a Teoria de Gaia.

O mundo, devido a sua crise, está ingressando num novo momento de consciência: por chamar atenção para si por meio de seus sintomas, está se tornando consciente de si mesmo como realidade psíquica. O mundo é agora objeto de imenso sofrimento, exibindo sintomas agudos e grosseiros, com os quais se defende contra o colapso (Hillman, 2010, p. 86).

O isolamento social jogou-nos para dentro de nossas cavernas e tivemos que nos reinventar de todas as formas para sobrevivermos. Isso falando de classes sociais possibilitadas de ficar em casa ou com trabalho reduzido ou a zero. Nunca ficaram tão escancaradas as diferenças sociais, as questões indígenas e o racismo. Para tratarmos dessa complexidade, não dá para se falar em pandemia, mas em pandemias que variam de acordo com os recursos ou falta deles.

O estudo à distância mostrou-se uma saída apenas para uma fatia da população com acesso à internet e equipamentos eletrônicos. Os hospitais particulares e públicos atenderam (ainda que com dificuldades) aos enfermos, mas os últimos colapsaram. Regiões distantes como a Amazônia e ficaram isoladas, sem auxílio. Nas palavras do compositor e cantor brasileiro, Renato Russo (1986): "nos deram espelhos e vimos um mundo doente". Alguns viram e ignoraram, outros viram e se espantaram e outros sequer viram.

Daí, passamos a outras etapas de ensaios de "abertura", cindindo de vez as demandas socioeconômicas. De um lado, a população que não pôde ter direito ao isolamento e continuou a trabalhar. De outro, o mundo dos negócios precisando retomar as atividades, com um colapso econômico à vista, especialmente, para os pequenos negócios. As elites "cansadas" da privação de não poderem viajar, festejar e passear em paz. E agora, entre praias lotadas, pessoas morrendo, o que mudou? O que aprendemos com tudo isso? Tantas profecias de evolução jogadas ao vento no início da pandemia mais pareceram mecanismos de defesa psicológicos em relação à morte. Todos "prometendo" se comportar, serem mais empáticos, colaborativos, para "merecerem" sair do castigo chamado pandemia.

Perdemos a perspectiva do que realmente essa pandemia veio nos dizer. Caímos nas armadilhas das raízes judaico-cristãs onde a culpa é uma forma (torta) de redenção, todo mal é um castigo divino e nós, para merecermos o reino dos céus, devemos ser bons. Esse maniqueísmo religioso e filosófico também é outro ponto colocado em xeque na pandemia. Não temos como negar, enquanto civilização, que isso nada tem a ver com essa visão monoteísta de um Deus salvador ou punidor como Javé do Velho Testamento.

O Brasil em chamas pelos motivos mais escusos possíveis mostra-nos que chegamos ao ponto máximo de ebulição como sociedade e que esse fogo tem tudo menos algo de alquímico, transformador. Das cinzas de nossos patrimônios naturais não sabemos o que irá renascer, mas sabemos o que está morrendo, um ambiente talvez irrecuperável. Diferente da Fênix que renasce das cinzas, esse fogo destrói e simboliza todas as forças contrárias à nossa casa, à terra, ao nosso país, ao planeta.

Assim, o presente artigo enfocou os ecos e reflexos simbólicos das pandemias, a partir de uma visão metafórica de Carl Gustav Jung, e do pós-junguiano James Hillman. Pretende-se aqui trazer essas perspectivas das imagens e da alma do mundo como caminhos e visões para compreendermos esse momento imprevisível.

Estamos de joelhos diante do inconsciente, rendidos, e precisamos estar, porque essa é uma perspectiva mais real: somos parte da natureza, mas não somos os dominadores dela. Somos parte do inconsciente, mas não o possuímos, estamos nele.

Devolver a alma ao mundo é perceber nosso tamanho e nosso lugar como tradutores desses movimentos inconscientes, da natureza psíquica e da natureza ao nosso redor, e não como donos de nada. A pandemia é a prova cabal dessa tese. Estamos impotentes, cegos e a visão aqui demandada é a de Tirésias, o cego vidente da mitologia grega, ou a visão interior das imagens que nos tomam, não apenas as imagens visuais, mas as afetivas, sensoriais, poéticas, míticas, dos sonhos e pesadelos.

Acreditamos que rever fenomenologicamente o que nos circunda e trazer de volta uma visão de que tudo é imagem e de que é nas imagens, e através delas, que poderemos vislumbrar outros cenários. Nunca ouvimos tantos líderes e pensadores indígenas, como Ailton Krenak, chamando-nos para olhar para o que nos circunda como partes de um todo inseparável.

Essa ideia de fazermos parte de um todo retoma novos estudos a respeito de animismo e reativa a ideia alquímica que Jung (1957/1998) reintroduz na psicologia de unus mundus: uma realidade subjacente unificada da qual tudo emerge e para onde tudo retorna. Esse chamado de reconexão do humano como mais um aspecto da natureza e da alma do mundo parece-nos potente e profícuo para esta reflexão.

A ideia alquímica de unus mundus, o último estágio da conjunção, é considerada em termos do processo psíquico do autoconhecimento. Em termos alquímicos, esta união final produz o mundo indiferenciado de antes da criação; no sentido psíquico, é a união do inconsciente liberado e assimilado com o inconsciente coletivo. Este processo, que forma uma parte essencial da crença oriental, é visto como um conceito estranho para a mente ocidental (Rothgeb, 1998, p.167).

 

A visão imagética

Carl Gustav Jung foi quem imprimiu à psicologia o simbólico, o imagético e o mítico. Quando rompeu com Freud, em 1913, entrou em um processo psicológico de imagens que o levou a registrar nos "Livros Negros", (uma espécie de cadernos de registro de suas experiências internas) os seus diálogos com imagens do inconsciente. Inicialmente resistiu, assustou-se, mas, ao render-se, fez um experimento de mergulho no inconsciente que transformou as anotações das experiências dos "Livros Negros" no "Livro Vermelho", uma obra na fronteira literária, artística e psicológica que, mais tarde, foi o caminho para elaboração metodológica da sua teoria. Na abertura do "Livro Vermelho", editado e organizado por Sonu Shamdasani, encontramos a seguinte citação de Jung (1957):

Os anos durantes os quais me detive nessas imagens interiores constituíram a época mais importante da minha vida. Neles todas as coisas essenciais se decidiram. Foi então que tudo teve início, e os detalhes posteriores foram apenas complementos e elucidações. Toda minha atividade ulterior consistiu em elaborar o que jorrava do inconsciente naqueles anos e que inicialmente me inundara: era a matéria-prima para a obra de uma vida inteira (Jung, 1928/2013, p. 9).

Por ser algo polêmico para os padrões científicos, especialmente em sua época, não foi publicado até 2009. Sua visão revolucionou não apenas o campo da psicologia clínica, como também a compreensão de fenômenos coletivos. Nunca esteve tão urgente aproximar-nos dessa perspectiva.

Apesar de ter sido o conceito de libido o grande motivo da separação de Freud e Jung, foi a descoberta do inconsciente coletivo e a questão arquetípica que marcaram territórios distintos tanto na visão clínica, quanto na visão do estado da cultura. Ao deparar-se com temas arquetípicos nas fantasias de pacientes esquizofrênicos, Jung debruçou-se em estudos de religião comparada, expedições para África, xamanismo, filosofias orientais, em busca de símbolos unificadores da experiência humana, assim como, seus próprios sonhos e devaneios que antecederam a Primeira Guerra Mundial mostraram-se não apenas de cunho pessoal, mas carregados de imagens coletivas em uma época histórica de grande ebulição e mudanças por vir.

Em sua trajetória, Jung percebeu a correlação entre o microcosmo e o macrocosmo; a lei de correspondência de Hermes Trismegisto - o que está em cima, está embaixo, o que está dentro, está fora - corrobora sua visão de unus mundus, fundamenta a sincronicidade e retoma a necessidade de devolver a alma ao mundo. Nesse sentido, seu projeto psicológico estava muito focado na ideia animista de que o humano é mais um dos elementos da alma do mundo, uma ideia platônica e também muito presente nos povos originários e nas filosofias orientais (Jung, 1943/2003).

O cientificismo racional devastou essa ideia, colocando o humano no centro do mundo, em particular, os colonizadores cristãos que catequizaram os indígenas, descaracterizando essa visão animista e criando um abismo e uma cisão da alma, antes do mundo e agora pertencente ao indivíduo que deveria "merecer" tê-la, sendo bom, fiel e temente a Deus, um deus punitivo e expiador. Perde-se a alma do mundo e o politeísmo passa a ser visto com muita desconfiança e como algo depreciativo, regressivo. Em outras palavras, o antropocentrismo, o racionalismo e o modelo mecanicista da ciência criaram uma cisão entre o humano e o mundo; a psique e a natureza; o subjetivo e o coletivo.

Jung dialoga, ao longo de toda a sua obra, com o mundo subjetivo e objetivo. Ele foi um crítico ardoroso da desconexão entre individualidade e coletividade no mundo moderno. Durante entrevista concedida a John Freeman, em 1959, Jung fez um alerta de que precisávamos mais do que nunca entender a psicologia humana, pois o homem era o maior perigo à sociedade e ao mundo.

James Hillman (1926-2011), psicólogo americano que vai a Zurich para formar-se no instituto de Jung, torna-se um dos grandes pensadores pós-junguianos, que também recupera essa visão animista e de retorno da alma ao mundo de forma mais contundente e polêmica do que os psicólogos clínicos que focavam, na época, visões subjetivistas e personalistas em suas práticas, excluindo assuntos como política e questões sociais do processo analítico.

Em vez da noção de realidade psíquica fundamentada num sistema de sujeitos particulares e objetos inanimados, quero propor uma visão predominante em muitas culturas (chamadas primitivas e animistas pelos antropólogos culturais do Ocidente), que também retornou, durante pouco tempo, na nossa, e que teve sua glória em Florença com Marcilio Ficino. Estou me referindo à alma do platonismo, que significa nada menos que o mundo almado (Hillman, 2010, p. 89).

Hillman (1995) questionou bravamente a perspectiva analítica e partiu para uma perspectiva imaginal, retirando o caráter substantivo da questão arquetípica e atribuindo-lhe um caráter adjetivo no que viria chamar de psicologia arquetípica, um novo movimento em direção à imaginação da cultura - libertando a psicologia analítica de conceitos e abstrações - e a uma terapia das ideias e não apenas das pessoas. A proposta epistemológica veio dos filósofos gregos como Heráclito, Platão, Plotino; da Renascença italiana, com Ficino e Vico; dos Românticos, como John Keats; de Jung, sua raiz principal e a quem, apesar de ter questionado, nunca deixou de honrar; de Gaston Bachelard e sua filosofia poética ou sua poesia filosófica; e de Henri Corbin e o conceito de Mundus Imaginalis de seus estudos do misticismo islâmico.

O que todos esses pensadores têm em comum, o que embasou a psicologia arquetípica, é um retorno à imagem como algo que precede à consciência. Por imagem, aqui, não estamos falando de uma função da consciência e, portanto, nem de um imaginar guiado, mas das imagens que povoam o inconsciente e que independem do ego, as imagens oníricas, por exemplo. Ao retirar o ego do foco, "dessubjetiviza-se" a psique e suas ilusões arrogantes de "meu inconsciente", "meus problemas", e coloca-se, como Jung e Freud já haviam feito, o ego no lugar de tradutor de algo maior do que ele. Não somos nós que imaginamos, mas somos imaginados; não temos um inconsciente, estamos no inconsciente.

Como Jung (1930/2003) diz "psique é imagem", assim, para acessá-la é preciso saber falar a língua das imagens, que está nos mitos, no inconsciente coletivo, na arte, na cultura e não nos complexos pessoais ou traumas. Isso, para Hillman (1995), é coletivo porque todos temos abandono, desamparo e traumas como experiência, mas o profundamente pessoal é o que está além disso, o contato e a abertura a imagens que nos tomam. Sua proposta era devolver a psique a seu lugar original. Hillman corrobora sua visão a partir da etimologia das palavras: "psique" em grego significa alma e "terapia", discurso e cuidado. Assim, a psique precisa de relacionamento. As imagens não querem explicação, mas diálogo a partir de imagens. Para isto, precisamos ser politeístas, buscar referências fora de conceituações, fazer alma. Cultivar alma implica cultivar imagens, ficar com elas, pois elas têm muito a nos dizer, mais do que abstrações.

As imagens querem conversar com outras imagens ou, nas palavras, de Carlos Drummond de Andrade (2012):

Se procurar bem, você acaba encontrando

não a explicação (duvidosa) da vida,

mas a poesia (inexplicável) da vida.

Assim, toda essa digressão é para contextualizar o que viemos propor aqui: as imagens as quais estamos sendo submetidos, rendidos, não são apenas aquelas das catástrofes externas da pandemia, mas as internas, incluindo a forma como são afetadas pelas imagens exteriores e vice-versa. São as imagens dos nossos pesadelos, devaneios, esperanças e medos. E por imagem também não nos referimos somente ao visual, mas ao sensorial, ao campo dos afetos (de como somos afetados). Mostra-se cada vez mais emergencial uma educação imagética para que possamos olhar além, ver através dessa pandemia. As soluções práticas científicas, tecnológicas, médicas necessitam da imaginação, desse contato com o profundo para devolver a alma ao mundo. A anima mundi está adoecida, mas, de acordo com Hillman (1995), ela se interessa por três questões básicas: beleza (estética-ética), comunidade e aflições. Nunca estivemos com condições tão propícias, ainda que dramáticas, para o retorno ao cultivo da alma no mundo. "A beleza salvará o mundo", disse Dostoiévski (1869/2015). Mas, por beleza aqui estamos no latu sensu dos gregos. A feiura, o espanto, o horror também despertam a alma.

A pergunta central nessa perspectiva é: como estamos sendo imaginados pela pandemia e como, a partir dessa resposta, podemos reimaginar outras formas de existir em um mundo em transição? Somos, na ideia de animismo e teia, parte e participantes dessa casa chamada Terra; somos influenciados e influenciadores do mundo, do "oikos", que em grego significa casa. Essa noção não dualista, não maniqueísta traz em si uma nova ética, ou melhor, o resgate de uma ética perdida que implica estarmos todos engajados, colaborando para uma recuperação dos danos que temos causado nas relações de poder, no abuso ao meio ambiente, nos separatismos religiosos etc. A visão mecanicista colapsou e fomos acordados aos gritos pela pandemia. Esse colapso não veio com a pandemia. Já vinha antes acenando, mas a pandemia encurralou-nos para confrontarmos o que parecia estar sendo negado. Inércia? Ganância? Ignorância? Comodidade?

 

Ecos e reflexos da pandemia

Quais são os ecos e reflexos que já podemos vislumbrar da pandemia? (muitos ainda inconscientes para nós): governos totalitários, necrofilia política, crise ambiental, incêndios, relações de destruição das nossas raízes e dos povos originários. Se na visão alquímica de Jung, de unus mundus, sobre a correspondência entre micro e macrocosmo, bem como, na perspectiva de Hillman (1995) de devolver a alma ao mundo, refletimos e ecoamos destruição, podemos também, ao ouvir e ao ver esses ecos e reflexos, refletir e ecoar a reconstrução, a recuperação desses danos causados pela alienação do humano com o meio e os seres que o circundam? Essa é a hipótese que vamos tentar fundamentar através da perspectiva imaginal e mitológica.

A mitologia grega oferece-nos muitas versões semelhantes dos mitos e, como são carregados de símbolos, também inúmeras interpretações e associações. Aqui vamos focar na versão e perspectiva de Patricia Berry (2014), psicóloga arquetípica, que dedicou em seu livro "O corpo sutil de Eco" um capítulo chamado a "Paixão de Eco". Diferentemente de outros olhares, aqui o foco centra-se mais na ninfa Eco, do que em Narciso, em aspectos que fogem do narcisismo como doença, em imagens da alma e em um apaixonamento pelas imagens, tal qual Narciso no mito.

Nessa perspectiva de Berry (2014), Eco representa tudo o que nos ecoa, até o que não queremos ouvir, sentir ou ver.

Numa versão bastante difundida, o mito narra a história de Narciso, o ser mais belo e ordenado por Afrodite a nascer, na tentativa de despertar o amor pela beleza e dissuadir os homens das guerras e disputas por poder. Porém, ao nascer, Tirésias, o profeta visionário cego, dotado de visão interna, prevê que Narciso viverá enquanto não se vir. A palavra narciso vem do grego "narkissos" e significa aquele que foi paralisado e narcotizado. Sua beleza narcótica paralisa a ninfa Eco, que logo se inflama de amor por ele.

Eco era uma ninfa falastrona que distraía Hera, enquanto Zeus a traía com outras ninfas. Quando Hera descobre a intenção da falação de Eco, lança-lhe a maldição de apenas repetir as últimas palavras dos outros. Eco se apaixona por Narciso que, no entanto, não a vê. Um dia, retornando de uma caçada, Narciso curva-se numa fonte, para se refrescar e depara-se com a sua própria imagem. Sem saber que era a sua própria imagem, apaixona-se e cai em desgraça por nunca ser correspondido. Eco diante da rejeição de Narciso definha tornando-se ossos e habitante dos espaços vazios entre os rochedos.

As palavras têm alma também. Eco em grego é "oikos", que significa casa. Em ecologia encontramos o estudo, reflexões e ações sobre a nossa casa Terra. O que será que nossa casa Terra tem ecoado? Estaríamos nós, narcisicamente, ignorando os ecos do planeta, ocupados com nossos reflexos na fonte tal qual Narciso?

O mundo contemporâneo, cansado pelos excessos de demandas, produtividade, performance, competição, vem gerando isolamentos em nossos próprios umbigos e fontes, aonde, num círculo vicioso e perverso, buscamos reconhecimento, honras e recompensas.

Nossa relação com a natureza, com o senso comunitário, fica embotada narcisicamente; nosso cansaço nos isola tal qual Narciso e ficamos entorpecidos por ideais que fecham as portas para qualquer percepção e engajamento com os ecos além das nossas demandas individuais.

Enquanto isso, assistimos à destruição ambiental, ao genocídio dos povos originários por interesses econômicos, ao acirramento das relações interraciais, ao abandono na política dando espaço para que figuras de pais autoritários sejam eleitas, numa falsa expectativa de colocar ordem, o que cabe a todos nós no exercício da cidadania. Foram delegados poderes que se transformaram em abusos, resultando em mais mortes e destruição. A postura negacionista desses governantes que encararam a pandemia como uma doença qualquer mostram uma necrofilia política e um genocídio em massa. Enquanto isso, o planeta adoecido, tal qual Eco, clama por olhar, cuidado, amor e relacionamento.

Berry (2014) deixa claro que Narciso, em seu entendimento, não é apenas o amor e o desejo por si próprio, mas pela imagem, pelo aprofundamento de algo que desconhece. De acordo com o mito, Narciso não é esse autoerotismo ou apaixonamento por si. Narciso não sabe que o reflexo que vê é o seu próprio e, portanto, é inconsciente de si. Assim sendo, isso leva-nos a repensar nosso estado coletivo, um complexo cultural de inconsciência sobre nós e nossas ações, uma mentalidade equivocada e alienada de que o que fazemos não teria reflexo no mundo.

Obviamente, não queremos ser ingênuos quanto a ações antiéticas e gananciosas, porém, tal qual Narciso, a humanidade vem ignorando o que está a seu redor. Olha para o imediato, para os seus interesses de grupo e, com isso, perde a noção do todo. Como no mito, enquanto Eco o observa, ele não a vê porque está abduzido por seu reflexo. O que teria ocorrido se Narciso olhasse ao seu redor? Se percebesse que a voz que ecoava era de outro querendo oferecer-lhe amor? Seria essa uma das chaves para nos repensarmos como humanidade? Pensarmos em Eros, deus do amor, das ligações eróticas, a força motriz das uniões; o cupido. Nessa imagem simbólica encontramos o gérmen do que falta ao mundo atual. Estamos em oposição a Eros.

Falta a nossa civilização ocidental não apenas empatia no nível macro, mas escuta e olhar a algo que ficou na sombra e desprezado. Quem seriam as Ecos dos nossos tempos? Líderes indígenas e pensadores como Ailton Krenak e Kaká Werá; mulheres negras como Djamila Ribeiro, que lideram e estimulam a revisão do racismo e feminismo; todas as pessoas excluídas e invisíveis socialmente.

Gambini, no IX Seminário de Psicologia Arquetípica, organizado pela Clínica Psiquê (comunicação pessoal, 2020), ressalta também que é tempo de trazermos à tona a função psicológica sentimento. Somos, como civilização ocidental, altamente regidos pelo pensamento, racionalidade e linearidade. Seria, talvez, o medo da morte, as perdas e até os desconfortos e dores corporais do covid-19 um chamado para voltarmos a essa outra função proposta por Jung? Para aquilo que Hillman também atenta ao pensamento do coração? No mundo antigo, relembra-nos Hillman, o coração era o órgão de percepção, associado aos sentidos e, na psicologia grega e antiga, além de órgão da sensação, era também o lugar da imaginação (Hillman, 2010).

Quando falamos do desenvolvimento do sentimento referimo-nos a duas coisas. Em primeiro lugar, a admissão na consciência de todos os sentimentos, que de fato se manifestem, mesmo os que tragam um sinal negativo para que deixem de ser reprimidos [...] Em segundo lugar, o desenvolvimento do sentimento significa uma evolução da função, que passa de sua estreita base subjetiva para uma adaptação mais livre (Hillman, 1971/2008 p. 152).

Segundo Gambini (comunicação pessoal, 2020), quem entende verdadeiramente o que a pandemia nos espelhou são os que sofreram preconceitos e exclusão. É a eles que devemos ouvir, porque ficaram na sombra por muito tempo. Encarar a sombra e integrá-la, seja social, seja individualmente, é o que expande a consciência, diria Jung (1945/1991). Esses representantes dos complexos culturais precisam despertar o estado narcísico ao qual estamos submetidos há séculos. A pandemia apresenta uma oportunidade única para sairmos do lugar de Narciso, do egoísmo (no sentido de culto ao ego), em direção a uma sociedade mais Eco, ecoísta.

Entrar numa perspectiva de Eco significa despolarizar da cegueira de Narciso e abrir espaço para que nossos gritos, nossa solidariedade, nossos medos e potências sejam ouvidos e ecoados uns nos outros. Sair de uma sociedade heroica para uma sociedade que possa abraçar vulnerabilidades, fracassos, tristezas e abandonos. Ao acolhermos o que consideramos inferior, menor, podemos olhá-lo e tratá-lo com mais dignidade. A negação não exclui os problemas, apenas torna-os mais sombrios. O que nos importa nesse mito para refletirmos sobre a situação pandêmica ou pós-pandêmica?

Em certa medida, a civilização ocidental tem muito de Narciso. Não apenas em seu aspecto patológico e bem conhecido popularmente, como também, numa cegueira quanto a reflexos sobre alteridade. Embora estejamos vivendo um momento de efervescência sobre as diferenças, continuamos no estágio que Caetano Veloso (1978) cantou: "é que Narciso acha feio o que não é espelho". E esse achar feio não é literal, mas uma recusa em se aprofundar em si para poder ser ecoado, seduzido pelo olhar externo e diferente do seu e, aí sim, desenvolver a alteridade.

Temos assistido em muitos países, como Brasil e EUA, a uma onda retrógrada, negacionista e fechada aos ecos da pandemia. Ecos gritantes, por sinal. Fiquemos com a imagem de Eco como a pandemia e de Narciso como a rejeição e negação dos reflexos ao seu redor. Para que isso nos serve? A meu ver, como instrumentos metafóricos de compreensão do que chamamos de realidade literal ou concreta.

É importante percebermos para que lugares apontam as metáforas que vivemos. Porque nelas estão também o que Jung chamou de telos ou direção, fim e propósito dos processos. A pergunta é: para que e para onde essa pandemia aponta? Para um fim ou para um recomeço? Possivelmente, para ambos. Precisamos finalizar uma etapa coletiva de capitalismo selvagem e dissociação com o mundo.

Não podemos inocular alma individual, nem isolá-la da enfermidade da alma do mundo [...] até que a psicologia admita o mundo na esfera da realidade psíquica -, não pode haver melhora e, de fato, estamos conspirando para a destruição [...] por carregar para a relação humana e para a esfera subjetiva a inconsistência reprimida que se projeta no mundo das coisas (Hillman, 2010, p. 88).

Precisamos, então, evocar outros mitos excluídos pela visão científico-racional, pela linearidade, pelas leis do mercado capitalista, pela competitividade, pelo negacionismo político e pelo nosso afastamento da natureza, nossa extroversão excessiva, nosso desprezo pelo silêncio e pela interiorização.

Ártemis, irmã gêmea de Apolo (deus do sol), é a contraparte noturna da luz. Deusa da lua, das vegetações, da fertilidade, da agricultura e da virgindade, pode ser um mito que ecoe na questão ecológica e também na nossa natureza psíquica. Fazemos parte de uma sociedade altamente apolínea, performática, na qual a claridade reina. Porém, a desconexão com os atributos simbólicos de Ártemis tem nos custado sofrimento, adoecimento e distanciamento das naturezas internas e externa. O caráter virginal de Ártemis refere-se a aspectos da natureza nunca antes tocados e que assim deveriam permanecer. A postura exploratória com a natureza violou o aspecto Ártemis: no nível subjetivo, percebemos nas psicopatologias contemporâneas um chamado de volta para a natureza psíquica, o inconsciente; coletivamente essa violação reflete-se nos desastres ecológicos, com as queimadas, na devastação do meio ambiente e dos animais em seu habitat, bem como na nas terras indígenas, ameaçadas por posturas primordialmente capitalistas.

Na psicologia de Jung (1947/1998), encontramos a questão da autorregulação psíquica como algo natural e, por psíquico, aqui entendemos coletivo e pessoal, conforme ressaltado. Nessa perspectiva autorreguladora, o que está na consciência tem sua contraparte no inconsciente. Quanto mais polarizamos, maior a tensão da sombra que poderá eclodir em sintomas físicos e psíquicos, individuais ou coletivos. Uma sociedade pautada em valores unilaterais contra a natureza gera reações que, na realidade, são tentativas de restaurar certo equilíbrio. Nesse sentido, a pandemia e os extremismos da nossa era podem ser ouvidos e vistos como ecos e reflexos que nos espelham, nos acordam, nos perturbam, atirando-nos do estado hipnótico e mesmerizado de um mundo narcísico.

Hermes é o deus grego considerado o mensageiro dos deuses, o comerciante, o comunicador e também o embusteiro. A ele estão incumbidas tarefas de trânsito de informação, de negociações e também que demandam agilidade e rapidez. Em seu texto "Intoxicação Hermética" (2007) Hillman trata de vários assuntos relativos às fantasias do fim de século, tecendo uma crítica à futurologia quando desconectada do passado, assim como, à rapidez e à agilidade hermética como marcas de um tempo globalizado, internético, que abre brechas para a indiscriminação na comunicação e nas questões financeiras, ou seja, Hermes atuando em seu lado sombrio.

Assistimos a uma era devotada à informação rápida, pouco consistente e muitas vezes falsa. A era das fake news veio para desinformar, como expediente escuso, manipulador e perigoso. Durante o processo da pandemia, fomos bombardeados por informações falsas, díspares, e o efeito psicológico dessa confusão foi o agravamento de desavenças, de crises de ansiedade e de depressões.

Quando estamos intoxicados hermeticamente, ficamos tomados pelo medo de estarmos para trás, ansiosos por saber de tudo, com a mente alada e o corpo fora de ritmo, com a sensação de estarmos nos ares e esquecidos. Esse estado inflado mais nos desconecta do mundo do que nos interliga. Os reflexos são evidentes em nosso tempo em que mal paramos para digerir uma informação e já estamos afobados pela próxima. Distraídos do meio que nos circunda, absorvidos pelos celulares, computadores, não nos olhamos nos bares, não ficamos em casa sem o celular nas mãos.

Uma das expectativas em relação à pandemia era que iríamos desacelerar. Porém, na realidade, tomados por essa intoxicação hermética, fomos tragados para frente das telas de computador, o tempo do trabalho, sendo contínuo, trouxe exaustão e uma sensação de estarmos sempre conectados e ligados sem pausa.

O par Hermes-Héstia pode também servir para nossa reflexão. Encontramos em Hermes a agilidade e a lábia para sobrevivermos a um mundo altamente demandante da capacidade comunicativa e persuasiva, porém, é esse aspecto que rouba nosso sono, tranquilidade e nos coloca porta a fora, como diria Gustavo Barcellos (2019).

O que mais necessitamos na atualidade é desse aspecto hermético de comunicação entre inconsciente e consciência. Essa escuta e compreensão do que vemos e do que não sabemos é a chave para o que Jung (1958/1991), chamou de terceiro não dado na função transcendente, que seria o caminho novo, não uma síntese das polaridades, nem meio termos, mas um novo aspecto. Precisamos, no entanto, nos cuidarmos quanto aos aspectos excessivos de Hermes: uma hiperconexão que nos afasta do inconsciente e suas potências.

Héstia, deusa da casa, da lareira e do fogo central da cidade de Atenas, é o aspecto porta para dentro (Barcellos, 2019). É dela que prescindimos. Ignoramos seus atributos de introversão, aquecimento interno, silêncio que fomos "obrigados" a voltar a cultivar na pandemia. É a ela que devemos honrar simbolicamente, pois a ela e à casa retornamos como refúgio na pandemia. Somente no silenciamento do mundo externo e no retorno à intimidade do nosso lar é que encontramos segurança na pandemia. Aqui não falamos da casa literal apenas, mas sobretudo, de uma atitude de cultivo interno, cultivo da alma. Assim como Hermes, Héstia também apresenta sombra e intoxicação.

Dentro do construto do par Hermes-Héstia, a limpeza étnica, o extermínio das populações nativas, a demolição de casas e a destruição do solo em um frenesi de autoproteção são excessos de Héstia combinados com os excessos de Hermes - as comunicações herméticas da rede mundial do ciberespaço e globalismo, onde qualquer lugar é toda parte, e a própria ideia de lugar tornou-se irrelevante. Assim como Hermes pode enlouquecer com a intoxicação hermética quando separado de Héstia, um monoteísmo de Héstia torna-se apenas pureza fanática, devoção fanática, o foco único no lar, na terra natal e nas relações familiares. Nenhum contato com os outros - eles se tornam um império maligno, um eixo do mal. Comunicação torna-se contaminação. Sem nuances, sem ambiguidade (Hillman, 2007, p. 169).

Em termos dos movimentos da pandemia, introversão (Héstia) e extroversão (Hermes) foram foco de muitas discussões e desavenças. Se por um lado, a pandemia impôs, por necessidade de prevenção de contágio, ficarmos mais em casa (quem pôde, obviamente), por outro, o ritmo de trabalho e a ansiedade coletiva levaram Hermes para o reduto de Héstia. Ou seja, lives, cursos, encontros sociais via Zoom e outras plataformas substituíram a extroversão na rua para a extroversão em casa. Para piorar o cenário, com a flexibilização da abertura de bares, restaurantes e shoppings, o retorno à rua vem se dando irregularmente, sem controle e sem máscara. No Brasil, estamos em vias de entrar na terceira, com a variante Delta. A repetição de sintomas, segundo Hillman (1995), é necessária para que o ego heroico se dissolva e encontre outra voz e compreensão: a psíquica, anímica. É preciso fracassar heroicamente para fazer alma.

 

Máscaras?

Psicologicamente, para formular o conceito de persona, Jung (1928/1991) tomou emprestado a função das máscaras no teatro grego, que era a de preservar as emoções e expressões faciais do ator para incorporar o personagem. Analogamente, Jung ressalta a persona como necessária e adaptativa, desde que não haja identificação com ela. Seu contraponto é a sombra, aspectos reprimidos socialmente e também potenciais que nunca vieram à consciência. Assim sendo, fomos chamados a nos proteger com protocolos coletivos que além do uso de máscaras, incluem ações higiênicas e afastamento social.

As máscaras tornaram-se marcas de resistência ao contágio, bem como de transgressão. Nas redes sociais, observamos fotos de grupos sem máscara aglomerados como deboche e escárnio ao vírus; negacionismo reforçado por alguns de nossos líderes políticos. O contágio psíquico dessas imagens é tão perigoso quanto a aglomeração em si, pois incentiva e traz a falsa ideia de que a pandemia acabou. Enquanto não integrarmos o que a sombra veio nos dizer, que somos nós o vírus para o planeta, estaremos nessa gangorra pandêmica.

As máscaras para muitos representam proteção, para outros, aprisionamento. Estamos mesmo mascarados e no sentido junguiano de persona, a máscara literal aqui compõe simbolicamente a nova persona coletiva, ainda que temporária. Os olhares assustados, as críticas aos desmascarados nas ruas e fotos em rede social são visíveis. A invisibilidade do vírus, por sua vez, máscara sua ameaça para alguns.

Defrontamo-nos aqui novamente com a questão da hybris que os gregos alertavam na relação com os deuses; a desmedida humana que acha que pode se equiparar aos deuses e que acaba por gerar reações dramáticas. Hades, tal qual o vírus, é invisível no mundo de cima e, como no mito do rapto de Perséfone, estamos sujeitos a esse rapto para o mundo subterrâneo e dos mortos. A morte tornou-se tema de discussões que variam de: "viver o momento e arriscar-se" ou "proteger-se para prevenir". Estamos aqui na ideia freudiana de princípio do prazer versus princípio da realidade; um mundo dividido!

 

Conclusões inconclusivas - imaginando o inimaginável

A pandemia tem gerado muito material científico, estatístico, filosófico, antropológico, sociológico por se tratar de um fenômeno de altíssima complexidade, requerendo vários olhares e perspectivas. Nosso intuito foi trazer uma contribuição para a reflexão desse momento crítico e histórico da psicologia arquetípica, que se debruça sobre o campo do imaginal como uma possibilidade de cultivo de alma na medida em que, como disse Jung (1930/2003, § 75, p. 55), "[...] tudo aquilo que se torna consciente é imagem e imagem é alma". Ao contatarmos o psíquico estamos falando de alma e a alma só pode ser lida, acessada, através de imagens. A famosa frase que atravessa a psicologia arquetípica, "ficar com a imagem", baseou-se na máxima grega "salvar o fenômeno" (Barcellos, 1995, p.10). Salvar o fenômeno é prestar atenção ao mundo com uma visão simbólica e ver na própria imagem o que é necessário para transitarmos para outra era. Nas palavras de Jung: "Para compreender o sentido de um sonho tenho que me ater tão fielmente quanto possível à imagem onírica" (Jung, 1947/1998, § 320, pp. 20-21).

Lembrando que grandes movimentos científicos, filosóficos, artísticos, para citar alguns, anteviram novos rumos a partir de imagens, mostra-se mister uma educação para as imagens. Um tempo para apreciação e contemplação de rumos ainda imprevisíveis a nossa consciência coletiva. Relacionar-se com o imaginal é também aproximar-se da maior fonte criativa que temos na nossa psique: o inconsciente. Quanto mais nos distanciamos dele, maior é a cegueira e as reações da natureza da psique. Analogamente, podemos dizer que, ao cindirmos nosso contato com a natureza a partir do Iluminismo, começamos a colapsar em vários aspectos como humanidade. O retorno do qual falamos aqui não é algo ingênuo ou idealizado, mas um retorno após séculos de história com guerras, epidemias, pandemias, colonizações para integrar as partes descartadas por uma mentalidade racionalista e exploratória.

Sabemos também que o inconsciente é atemporal e não espacial, assim sendo, em tempos de grandes turbulências coletivas, esse retorno para os sonhos e para as imagens que nos tomam pode ser guia para uma nova ética e novos rumos. O tal "novo normal" parece-nos um termo arriscado, pois em sua formulação traz ao lado, mais uma vez, algo normativo e uma expectativa de retorno a um caminho sem volta. Estamos diante do desafio de novos rumos e o risco de repetição é alto pelo que temos observado em atitudes e resistências contra a prevenção da covid-19, como também, fatias da sociedade em busca de repetições de formas obsoletas de poder que rompem qualquer possibilidade de diálogo com o diferente e com a transformação social mais do que necessária.

Relacionar-se com imagens é ver a perspectiva metafórica nas notícias, nas cenas cotidianas, nos devaneios, medos e esperanças, na angústia, na dor de fazer parte de tudo que nos circunda, na beleza de ouvir vozes, antes abafadas, podendo se manifestar.

Não poderíamos deixar de citar Pan, outro deus grego, das florestas, meio animal e meio homem que tem em seu nome o prefixo grego que significa tudo. Em Pan encontramos o desejo indiscriminado pelas ninfas, o medo difuso que causava naqueles que cruzavam as florestas (daí a palavra pânico) e muitos outros aspectos, mas o que nos importa aqui é o tudo ou todo: todo tempo conectado, desejar tudo, temer tudo. Entramos mais do que nunca na floresta de Pan e como Hillman (2007) diz, assim como Hermes, o mensageiro que pode levar informações indiscriminadas, Pan pode gerar medos generalizados. Pânico, pandemia, pandemônio levam o prefixo pan (tudo, todos).

Pan deseja Eco [...] Mas, Eco não sente da mesma forma. Na história, ela foge de Pan. Eco rejeita a exigência de que tudo seja ecoado [...] Ela deseja uma única coisa [...] Ela deseja o singular, o narcisisticamente autocontido, aquele que está enclausurado em sua própria imagem [...] (Berry, 2014, p. 138-139).

Na paixão de Eco por Narciso, podemos pensar que ambos são aspectos simbólicos da realidade e ambos clamam por amor e diálogo. O mito não nos apresenta uma imagem de diálogo, mas de solidão, apesar do desejo de ambos por voz e olhar compartilhados. Também o desejo de Eco pelo singular e contido em Narciso, leva-nos a pensar que a anima mundi clama, neste momento, por aspectos reprimidos que, como Narciso, não puderam se desenvolver porque foram ceifados por valores que excluíram a contemplação, o apaixonamento pelas imagens. Cabe a nós, buscarmos um desfecho e um novo mito e nova ética, em que ecos possam ser ouvidos e reflexos cultivados com alma e atenção a especificidades que a pandemia veio nos dizer e mostrar: libertar a alma do mundo de ensimesmamentos e devolver a voz da sua singularidade, que é o desejo pela comunhão entre os povos, os humanos e o planeta, pelas diferenças e por um modelo social colaborativo.

 

Referências

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Berry, P. (2014). O corpo sutil de eco. Petrópolis, RJ: Vozes.

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Recebido: 13 jul 2021
1a revisão: 16 ago 2021
Aprovado: 16 ago 2021
Aprovado para publicação: 24 set 2021

 

 

Conflito de interesses: A autora declara não haver nenhum interesse profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a este manuscrito.
Minicurrículo: Yedda Helena Raynsford Macdonald - psicóloga clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP; pós-graduada em Psicologia Analítica pela PUC-SP e Terapia Ocupacional - Práxis Artística e Terapêutica pela Universidade de São Paulo - USP. Membro analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica - SBPA. Autora do livro "Divagar, devagar: depressão e criatividade" e coautora e organizadora do livro "Pescaria noturna - elaborando criativamente o lado escuro da psique", ambos pela editora Appris. São Paulo/SP, Brasil. E-mail: yeddarmac@gmail.com