ARTIGO
DE REFLEXÃO
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2022.vol07.0003
Atendimento on-line: onde fica o corpo?*
Online care: where the body is?
Atención en línea: ¿dónde está el cuerpo?
Mauro Fernandes Ribeiro de OLIVEIRA
Salvador, BA, Brasil
RESUMO
Diante do advento da pandemia da covid-19 e das transformações que tal circunstância outorgou ao encontro analítico, este artigo buscou revisitar e questionar o que se mostra fundamental ao fazer psicológico em tempos de tantos distanciamentos, enquadramentos e contaminações, guiado pela pergunta: onde vai parar parte da opus analítica quando o corpo sai de cena? Pretendeu ainda instigar um olhar através dos símbolos do nosso tempo, perpassando cinco tópicos: cabeça, tronco, pernas, casa e pulmão, que visam devolver corpo ao fazer dos analistas e da própria psicologia profunda contemporânea. Os argumentos trazidos transcendem em muito as circunstâncias repentinas oriundas da adequação dos consultórios de psicologia para a modalidade de atendimento remoto.
Descritores: Psicologia junguiana, terapia online, corpo, corporeidade.
ABSTRACT
In face of the advent of the pandemics of covid-19 and the transformation that this circumstance has brought to the analytic encounter this article aimed at revisiting and questioning what seems fundamental to the psychological activity in times of so many distances, frameworks, and contamination, guided by the question: where does a part of the analytic opus when the body falls out of the scene? It also intended to instigate a regard through the symbols of our time, pervading five topics: head, trunk, legs, house, and lungs, that intends to reestablish body to the work of analysts and to deep contemporaneous psychology itself. The arguments brought transcend very much the sudden circumstances originated by the adaptation of the psychology office to the modality of remote care.
Descriptors: Junguian psychology, online therapy, body, corporeity.
RESUMEN
Frente al advenimiento de la pandemia de la covid-19 y de las transformaciones que esa circunstancia le ha concedido al encuentro analítico, este artículo procuró revisitar y cuestionar lo que se muestra fundamental al quehacer psicológico en tiempos de tantos distanciamientos, encuadramientos y contaminaciones, guiado por la pregunta: ¿adónde va a parar parte del opus analítico cuando el cuerpo sale de la escena? También pretendió instigar una mirada a través de los símbolos de nuestro tiempo, recorriendo cinco tópicos: cabeza, tronco, piernas, casa y pulmón, que pretenden restablecer cuerpo al quehacer de los analistas y de la propia psicología profunda contemporánea. Los argumentos presentados transcienden y mucho las circunstancias repentinas provenientes de la adecuación de los consultorios de psicología a la modalidad de atención remota.
Descriptores: Psicología junguiana, terapia online, cuerpo, corporeidad.
Introdução
Em 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) (OPAS, [2021]) foi alertada sobre vários casos de pneumonia na cidade de Wuhan, na China. Menos de três meses depois, em março de 2020, no Brasil, do outro lado do mundo, a situação de calamidade já se espalhara. A pandemia do coronavírus constelou a imagem do "contágio" em nosso século: as distâncias inalcançáveis ou fronteiras intransponíveis deixaram de existir, estamos em constante troca, nos afetando. Tudo circula mais rápido do que podemos supor, perceber ou evitar.
A psicologia, diante de cenário de tamanha incerteza, estresse, medo e dor viu-se ainda mais solicitada. Quando o mundo parecia parar, a maior parte dos profissionais da área clínica começou a digitalizar-se. O dia a dia da análise migrou em larga escala para as telas: celular, wi-fi, pacote de dados, computador. O cotidiano do analista não estava apenas assegurado, tornara-se impulsionado. Por que não passar a atender quem quer seja, onde quer que esteja? Quantos mais se pode alcançar, já que no "novo normal" - ao menos para as esferas mais favorecidas da população - praticamente todas as reuniões passaram a se dar exclusivamente a partir das tecnologias digitais de informação e comunicação?
Foi assim, quando a proximidade geográfica parecia não mais significar um fator diferencial para os encontros, que um elemento fundamental do processo analítico deixou de ser acessível à experiência imediata em termos somáticos e visuais: não era mais possível contar com a expressão corporal, como acontecia antes, em uma sessão presencial entre terapeuta e paciente. Pergunta-se então: aonde vai parar uma parte da opus analítica quando o corpo sai de cena?
Um primeiro ponto a se refletir diz respeito a maneira como a nossa categoria - a psicologia clínica - tem respondido a essa transformação da realidade e de seu próprio fazer. Trata-se de uma questão que deve se restringir em termos de aceitação e adaptação?
As experiências clínica e de ensino via telas nesse período despertaram para a ideia de que a própria concepção de presença necessita ser ressignificada. Estar presente na modalidade on-line, ao menos em espaços que se propõem ao encontro, tornou-se escolha. A presença não é mais algo dado. O ato de estar deixou de significar o mesmo que antes. A presença agora requer, mais do que nunca, uma decisão.
Para o sociólogo Pierre Lévy (1996), no ambiente virtual os limites de espaço não são mais dados e há um compartilhamento de tudo, tornando difícil distinguir o que é público do que é privado, o que é próprio do que é comum, o que é subjetivo do que é objetivo. Trata-se assim de um ambiente dispersivo, onde tudo se anuncia ao alcance de um clique. Tudo, menos a presença, que passou a ser exercício de escolha, um chamado incisivo à consciência diante da ausência de corporeidade.
Este ensaio propõe o trânsito por cinco tópicos - cabeça, tronco, pernas, casa e pulmão - que se tocam, por vezes se repetem e se misturam, com o intuito de provocar questionamentos e reflexões oportunos para que a prática clínica não se esvazie (ou mesmo se perca de seus princípios mais caros), devido a essa nova configuração tida como normal e que tende a permanecer atrelada ao fazer psicológico.
Após os três primeiros tópicos - cabeça-tronco-pernas -, nos vemos em "casa" e precisamos absorver a ideia de voltarmos ao corpo com mais profundidade e atenção do que nunca (pulmão).
Tópico 1: cabeça
O que diz o não estranhamento, a rápida adaptação, da maior parte da categoria de forma tão imediata ao modelo de atendimento remoto?
Em termos simbólicos talvez a imagem tenha simplesmente se tornado escancarada, ilustrando o que há muito já configurava nossa prática ou, ao menos, o foco da maioria das abordagens: apreço por constructos, voltados para a cabeça, como se nos víssemos demasiadamente em termos racionais. Talvez a dissociação mente-corpo já fosse a tônica dos nossos consultórios e da maneira como praticamos a clínica.
Será, então, que a impossibilidade visual do corpo inteiro no setting, inerente à modalidade on-line, nos devolverá - via imaginal - aos nossos corpos? Será que o soma encontrou uma forma de (re)despertar o interesse analítico, justamente a partir da sua ausência (tornando-se agora mais um conteúdo a ser questionado e elaborado por narrativas de sessão)?
Segundo Jung (1988, citado por Zimmermann, 2011):
existe uma ligação entre a consciência e o inconsciente que, por um lado, conduz à dimensão puramente espiritual ou psíquica, e, por outro, à dimensão corporal e material. Quando nos movimentamos na direção do espírito, o consciente se torna o inconsciente psíquico; quando nos movimentamos na direção do corpo, ele se torna o inconsciente somático (pp. 171-172).
Frequentemente, a prática clínica depreende-se apenas em uma dessas direções. Aprende-se cedo em psicologia profunda que é preciso fazer o paciente falar, inobstante a linguagem corporal. Mas corpo e psique são dois aspectos da mesma realidade, que diferem entre si somente porque a consciência os vê de forma diversa. Não é usual acompanhar debates criteriosos de analistas a respeito das inúmeras outras percepções que nos chegam, por vias não-verbais, durante as sessões clínicas: conteúdos latentes desejosos de atenção e tato para emergir.
Qual espaço é dado na opus analítica para as impressões, as sensações, ou mesmo, para os ruídos de ambiência durante os atendimentos? O que nosso corpo costumava nos dizer em consultório? E agora, o que ele comunica quando aparentemente reduzido a um rosto enquadrado na tela?
Onde nos dói, analistas? Fisicamente, inclusive, quando o nosso próprio corpo se queixa durante a sequência de atendimentos - tínhamos corpo presencialmente, de fato, para tal rotina? Temos corpo disponível, nesse modelo remoto, para quanto? Será que esses novos desconfortos são também sinalizações (por vezes somáticas) a respeito de questões transferenciais e diversas outras ininteligíveis percepções clínicas?
No trabalho corporal a pergunta é: será que o corpo possui uma consciência própria, ou trata-se de um processo intelectual subordinado ao eu? As minhas observações clínicas revelam que o corpo possui uma capacidade perceptiva e uma inteligência próprias, que se distinguem da consciência egóica em muitos aspectos. O corpo possui uma memória mais antiga e mais ampla [...]. Isso se deve ao fato de que, na vivência corporal, incidem as dimensões instintivas e arquetípicas da experiência humana (Zimmermann, 2011, pp.168-169).
Talvez esses tempos com telas focando apenas cabeças nos acordem, finalmente, para o que tem estado invisível. A função inferior na psicologia analítica representa justamente a parte desprezada da personalidade, a parte inadaptada, que é também, por sua vez, a parte responsável pela conexão com o inconsciente, chave indispensável para o todo (von Franz, 1995).
Tópico 2: tronco
É tarefa do analista trazer à consciência o que está inconsciente. Contudo, por diversas vezes, o processo de esclarecimento - os muitos insights decorrentes do acompanhamento em psicoterapia - mostra-se insuficiente para que o paciente consiga adotar, de fato, outra postura perante suas questões (complexos) e relações.
Geralmente atribuímos tal enredo ao processo lento, ao tempo de cada um. Porém, pouco questionamos a respeito do corpo do paciente diante de toda essa gama de conteúdos e associações desvendadas nas sessões. Segundo Anna Freud (1936/1968), as atitudes corporais - como a rigidez, peculiaridades pessoais, sorriso fixo, comportamento irônico - são resíduos de processos defensivos muito vigorosos, que evoluem até mesmo para traços caracterológicos permanentes. Nesse sentido, deduz-se quão importante é examinarmos os entraves de estrutura para o (novo) fluir da energia psíquica em cada um. Até que ponto o analisando percebe as reverberações dos conteúdos trabalhados em seu próprio corpo? Quando ele sente que precisa, por exemplo, "se alongar" (desoprimir-se) ou "fazer tônus" (prontidão), para que tais proposições alcancem-no em mais níveis e cheguem, por assim dizer, até o seu sistema motor? Como o corpo reage para que novas compreensões se tornem também outra postura de ação?
Disse Jung: "Trabalhando muito consegui, aos poucos, apoiar em terra firme minhas fantasias e os conteúdos do inconsciente. As palavras e os escritos não eram bastante reais para mim; era preciso outra coisa" (1961/2016, p. 225). Para Jung, a ideia parecia "absurda", mas ele a concretizou e construiu a Torre de Bollingen. "Nela, via a realização do que, antes, era um vago pressentimento" (Jung, 1961/2016, p. 227).
Talvez a nova configuração do normal em psicoterapia, e a sua rápida aceitação por grande parte da categoria, constele o trunfo absoluto do verbal no fazer clínico contemporâneo. Nesse sentido, falta contato com o tronco, falta aproximação com o sistema-motor. Quanto da opus analítica se esvai em termos de vagos pressentimentos? Urge questionarmos o poder desmedido que atribuímos às palavras no processo analítico, colocando-as em condição de sedimentar uma experiência tão mais expansiva: de contato (e realização) com conteúdos do inconsciente.
Em termos psicológicos, é como se a palavra denotasse hoje, inequivocamente, o principal meio de acesso do ego à relação com a imensidão dos conteúdos provenientes do Self. A principal via de reconhecimento e ampliação da consciência: a palavra como psicopompo-basal do eixo ego-Self. Não obstante, sabe-se o quanto a dimensão inconsciente ultrapassa os nossos meios e faculdades e é nesse sentido que o corpo (potencialmente) carrega outros inúmeros receptores com os quais a consciência-analítica ainda dialoga de forma insuficiente. Vale destacar que tal reflexão circunscreve-se a ênfase da formação (e da prática) de psicoterapeutas com orientação junguiana até hoje, pois, sabe-se, há muito, do trabalho de diversas outras abordagens psicológicas e terapêuticas com forte enfoque somático.
Denise Ramos (2006) reforça que a consciência corporal é um deintegrado, é a percepção de uma parte do corpo total:
O desenvolvimento da consciência individual/coletiva traz à tona novos deintegrados, novos conhecimentos que são reunidos a essa percepção, a qual será sempre parcial. O conhecimento do corpo total corresponde, nesse sentido, ao conhecimento do corpo do Self, da totalidade (pp. 55-56).
Circunstância da pandemia da covid-19
Quando o mundo parou por conta do inusitado da pandemia, a grande maioria da categoria aderiu, sem tempo para maiores ressalvas, ao recurso das telas, abrindo as portas de suas próprias casas para todos os pacientes. Assim, não é apropriado refletirmos sobre a prática da psicoterapia on-line (enquanto fenômeno de larga escala) dissociada dessa circunstância.
Para Byung-Chul Han (2021), o coronavírus acelerou alguns males de nosso tempo - vide as videoconferências que nos privam da felicidade do contato direto e fazem desaparecer os rituais e os espaços comuns. Também nessa direção, a jornalista Eliane Brum (2020) defende que a invasão contemporânea é justamente aquela que sequestra o espaço da vivência dos afetos, da intimidade, dos prazeres e das subjetividades. Ela sinaliza que esse "assalto", a médio e longo prazos, pode provocar muitos estragos no corpo-mente de cada um.
Aqui, cabe a questão: de que lugar responde uma clínica, que encontra rapidamente um lugar em um mundo fora de lugar? Quem está confortável em tempos assim não pode estar também flagrantemente adoecido? É preciso extremo cuidado com as adaptações fáceis e imediatas em se tratando desse nosso ofício.
Há o grande risco de estarmos inclinados, inconscientemente, para o apaziguamento de agonias e amarguras derivadas de um mundo em pleno colapso. A psicologia não deve estar a serviço da adaptabilidade, retirando o sujeito de angústias provenientes dos sintomas sociais de sua época.
Uma conexão que se pretende à altura de um novo zeitgeist demanda pausa. Um tempo de não-resposta perante o ruir das velhas formas que perpassa pelo oposto da resposta de mercado (que facilmente nos cooptou). Em meio ao excepcional sofrimento planetário, a nossa resposta, enquanto categoria que se enuncia comprometida com as questões profundas do humano, foi a de rápida conformação.
Um mundo radicalmente modificado, no que tange aos usuais modos de relação, nos pede simplesmente uma psicologia mais acessível a partir de equipamentos móveis? Segundo Hillman e Ventura (1992/1995), a psicoterapia precisa ser empurrada para além de suas ideias já estabelecidas, precisa ganhar novo estímulo, antes que seja totalmente aliciada como mais um artificio para encaixar as pessoas em uma moralidade forçada e falsa.
Uma situação dessa magnitude nos pede outros estímulos, para que não sejamos vítimas inertes de antigas e enrijecidas ideias individualistas. Precisamos de mais tronco, para que seja possível alçarmos outros movimentos; mais tronco, para sairmos da resignação e/ou do entorpecimento. Reside aí a diferença, para a qual deve-se chamar atenção, entre o coletivo-rebanho - sem corpo próprio, imediatamente ajustável às circunstâncias de superfície, indiferenciado em suas questões e valores - e um coletivo-comunitário - substancializado, de/com corpos que interagem constantemente e se questionam, favorecendo a emergência de um viver em comunidade que comporta cada vez mais especificidades, diferenças e, portanto, complexidades.
É preciso sentir e debater o impacto destes tempos em nós para que não sejamos seduzidos por automatismos ideativos restritos a termos de produtividade ou a alcance espacial das tecnologias. A quem temos sido úteis quando nos portamos de forma tão amoldável ao corpo ausente? Devemos nos questionar, afinal, se nosso labor serve mais à desconstrução ou ao reforço dessa lógica fomentadora de tantos sofrimentos psíquicos.
E a terapia, na sua loucura, ao enfatizar a alma interior e ignorá-la do lado de fora, sustenta a decadência do mundo real. Contudo, a terapia segue acreditando cegamente que está curando o mundo e tornando as pessoas melhores [...] muitos dos que são terapeuticamente sensíveis são politicamente silenciosos e insignificantes (Hillman e Ventura, 1995, pp. 16-17).
Que corpo emerge da análise que fazemos?
É importante salientar que tal pergunta transcende o formato de atendimento adotado. Como visto no tópico anterior, por diversas ocasiões, a clínica presencial pode estar desprovida de corporeidade. Por sua vez, o atendimento on-line - se e quando bem-sucedido - tem comprovado que o setting não está restrito à proximidade entre os entes da psicoterapia, ele alcança o ponto de conexão que estes são capazes de alcançar e de sustentar um diante do outro. "A opus da alma como artesanato coloca a noção de trabalho da psicoterapia analítica numa base ao mesmo tempo mais sensorial e menos racional" (Barcellos, 2012, pp. 18-19).
O quanto o corpo responde irá requerer cada vez mais atenção do nosso próprio corpo (de analista) e cada vez mais observações e perguntas sobre o corpo do outro (analisandos).
Mas, quando se trata conexão apenas como a qualidade do sinal de wi-fi, evidencia-se considerável grau de ausência relacional. É provável que nessa situação estejam simplesmente os entes pescoço-cabeça, faltando contato e conexão, faltando eixo-tronco.
Segundo Wahba (1982):
[...] o corpo nos dá a manifestação da energia no seu plano material, sofrendo as perturbações e transformações que ocorrem na psique. Se falo de um ego inflado, ou um ego alienado, ou de uma personalidade cujo centro está cada vez mais próximo do self, posso observar tal processo nos estados de "alienação" (apatia, desligamento, o corpo desvitalizado, sem energia disponível) ou "inflação" (atuação, liberação, manifestação caracterizada por alto grau de inconsciência) corporais, assim como observo um eixo corporal "centrado" (p. 29).
Essa nova modalidade nos convida de volta às sutilezas, tudo o que desnaturalize o continuísmo irrefletido e irrefreável, com atenção aos momentos de falhas técnicas (possivelmente sinais vivos do setting à distância). Ruídos na frequência ou nos receptores: algo entre dois, algo entre nós. Pode-se imaginá-las como nada casuais: a psicanálise nos ensina que algo que pode dar errado, vai dar errado quando a resistência surgir (Fink, 2007/2017, p. 328).
As resistências de conexão podem estar, portanto, mais acessíveis do que nunca. Somente é possível integrá-las, se de corpo-presente, se com o corpo inteiro. A transferência definitivamente não se desfaz por telas, mas se dará na medida do quanto a minha presença, pulsação e ruídos respondem à presença do outro lado.
Para James Hillman (1989), a qualidade do psicólogo perpassa um modo de ouvir e reagir, "você não estabelece as conexões, elas já estão lá. Hermes estabelece as conexões" (Hillman, 1989, p. 58). Posteriormente, ele ainda acrescenta que a teoria da transferência supervalorizou o analista, "o analista absorveu a imagem do paciente, e até substituiu-a, de maneira que seus pontos de vista, seus pensamentos tendem a dominar o que está acontecendo" (Hillman, 1989, p. 61). Nesse sentido, defende-se aqui que "matar a imagem" pode, muitas vezes, ser o nosso "hábito-cabeça" de intervir e construir onde o corpo, a presença e a libido puramente não estão.
Em uma linguagem alquímica, a psicologia analítica hoje talvez peque por excesso de albedo: cadê o rubro, cadê o corpo? Como não notar que ali, diante de nós, tem uma perna balançando energicamente? O que (no corpo) um conteúdo de análise mobiliza?
Há sempre um ponto para o qual o paciente retorna, a análise retorna: o ponto de fixação, de contato. Esse é o ponto que parece evocar o tronco, já que denuncia que nossos conceitos e observações carecem de outro corpo analítico. Sustentar o corpo que quer emergir a partir das suas geografias de pulsação é tornar a albedo, rubedo.
A analista junguiana e pesquisadora do corpo, Adriana Ferreira, em sua tese "Corpo Inteiro uma conquista: um sonho maior" (2014) afirma que
A linguagem do corpo revela-se como uma voz silenciosa e disfarçada para falar de uma vida com traumas e medos. Estas práticas nos alertam para um fato decisivo na vida do corpo. Todo corpo tem memórias que são guardadas de modos diversos, mas que deixam uma pontinha de fora, como um sinal para que um dia, em alguns momentos, possamos voltar lá e dar uma sequência a um evento doloroso ou traumático, reorganizando uma postura face ao próprio sofrimento e medo (p.192).
Estarmos com nosso tronco enquanto atendemos é um tributo ao incômodo como lugar terapêutico, um apelo para os analistas sustentarem a tensão psíquica do não saber fazer a priori, para que algo novo finalmente surja na clínica e, principalmente, como mudança de paradigma.
Com a distância do on-line, é necessária a escolha por mais presença, atenção e disponibilidade, um movimento como que compensatório, avesso ao lugar automático e desimplicado, seja com o outro, seja com o trágico de um mundo em colapso. Byung-Chul Han (2020) alega que reagir de imediato e seguir todo e qualquer impulso já seria uma doença, uma decadência, um sintoma de esgotamento. A psicologia precisa ter especial cuidado com o lugar imediatamente adaptável de virtualização do fazer. Um fazer repetitivo, outrora apreendido, em risco de se tornar cindindo e desconectado.
Tópico 3: pernas
Paradoxalmente, talvez nunca na história da psicologia clínica tenhamos estado tão próximos da dor de nossos pacientes. O convite é, portanto, para seguirmos juntos. É preciso aceitar a inevitabilidade de alguns desmoronamentos, apenas assim o que carece emergir, emergirá.
Jung, em "Símbolos da Transformação" (1928/2011), afirma que a regressão da energia psíquica caracteriza numerosas possibilidades de aplicação, já que a libido ali readquire sua polivalência indiferenciada original - eis a individuação, uma regressão antecedendo uma nova (inédita) progressão da energia psíquica. Essa experiência se dá no corpo, é vívida, se tivermos pernas capazes de confiar no passo que ainda não foi dado. Trata-se de mobilidade psíquica.
O homem moderno faz-se raro à medida que consegue efetivamente se deparar com as questões do seu momento histórico, sem se afastar dessa tensão psíquica, valendo-se de antigos pressupostos. É preciso suportar que as novas respostas ainda não existem com certeza, pois estarão no futuro (Jung, 1928/2013).
A nossa análise suporta tamanho contato? Ou permanecemos distantes reaplicando modelos vencidos diante do sofrimento escancarado de nossos dias? Sempre que nos ajustamos de forma tão imediata a novas (e desafiadoras) circunstâncias, estamos em alguma medida nos valendo de antigas respostas, as quais, por sua vez, nos fazem desviar não apenas das tensões e angústias, mas principalmente de um novo padrão de consciência que anseia emergir. Nota-se assim que a energia psíquica resiste à regressão necessária e, portanto, resiste também à recriação da individuação.
Antigos modelos não dão mais conta da realidade que escolheu a nossa era. Se a terapia precisou mudar em nível instrumental, devemos nos questionar - psicologicamente - sobre a realidade que se constelou: a de que a terapia precisa mudar. "Tornar-se on-line" talvez nos invoque a estarmos presentes, em favor do fim definitivo do distanciamento apolíneo que se apoderou demasiadamente do nosso labor. Segundo Lopes (2010, p. 246), Apolo, "representa a noção de distância propiciatória à objetividade", este atributo figura, portanto, como pretensamente necessário para todas as áreas de desenvolvimento do conhecimento científico.
Contrário a esse modelo apolíneo, James Hillman (1979/2013) afirma que
Nosso tão conhecido termo psicologia profunda o diz diretamente: para estudar a alma devemos ir fundo, e quando vamos fundo estamos envolvidos com alma. O logos da alma, psicologia, implica o ato de viajar pelo labirinto da alma no qual nunca podemos nos aprofundar suficientemente [grifos do autor] (p. 49).
Tópico 4: casa
O que configura o campo na análise à distância? Se tornou mais substancializada a ideia de que temos um novo setting para cada encontro analítico. O setting agora é a conexão possível de ser estabelecida entre nós e nossas sensações, olhares e interferências.
Ficar em casa é um dos aprendizados determinantes. Tornou-se imperativo "voltar" para casa após cada atendimento, a não ser para o analista que se sente confortável em emendar uma chamada na outra. Ainda que essa seja uma possibilidade tão objetiva quanto a de chamar o próximo paciente na sala de espera, parece mais flagrante o risco de excessiva operacionalização de um trabalho que se pretende singular.
Um (potencial) grande erro seria o de travarmos na imagem da cabeça: aprisionamento racionalizante. Atentemos para a tentadora fantasia da análise a apenas um clique de se iniciar. É mesmo possível estar em conexão de onde estivermos, como estivermos, ainda que totalmente esquecidos desse compromisso? Sentar-se frente a frente é o suficiente para uma sessão de psicoterapia?
O que configura o nosso campo analítico em um trabalho a distância? Quanto de preparo é preciso antes de cada nova ligação? Quais os novos ritos de entrada/saída no consultório?
A nova experiência sugere que estejamos mais recolhidos e em maior intimidade com nosso lar. Uma casa não é - e não deve se propor a funcionar - apenas como um consultório. Tal hábito, de excessivo centramento na produtividade, precisa ser cuidadosamente revisto. "Nós nos exploramos voluntária e apaixonadamente, acreditando que estamos nos realizando. O que nos esgota não é uma coerção externa, mas o imperativo interno de ter que render cada vez mais" (Han, 2021).
Tópico 5: pulmão
De uma forma ou de outra, todos nos sentimos hoje muito cansados e extenuados. Tornou-se rapidamente comum a queixa de cansaço associada a essa nova modalidade. Tal manifestação pode ser vista como positiva, desde que ela nos devolva ao corpo.
O cansaço nos desacostuma dos enquadres tidos como habituais (rotina sequenciada de sessões), nos devolve para a crítica e para o cuidado com a prática. Nos devolve para nós. Torna ululante o ritmo desenfreado e maníaco de acesso a tudo a qualquer tempo e em qualquer espaço. Nos devolve para a pausa. Mostra-nos que circunstâncias diferentes clamam por novos arranjos, pausas e ares. Insistir no esforço adaptativo tem se mostrado exaustivo. "Não consigo respirar" é mesmo uma imagem que ecoa no mundo de hoje (Deutsche Welle, 2020).
Algo mudou e isso não se refere apenas à sala ou ao computador. É outra forma, outro corpo clínico, outros recursos de personalidade, de aprofundamento, e outras tecnologias de acesso. A clínica precisou ser reinventada. Isso impele-nos a desconstruções há muito evitadas de práticas e ritmos que não mais se sustentam; tóxicos, mas infelizmente intensificados de forma ainda mais impetuosa no sistema home office.
Eliane Brum (2020) chama nossa atenção: se tornar "descasado", no sentido de sem casa, é o que está acontecendo hoje, principalmente, com aqueles que, desde março de 2020, foram intimados ao home office. A experiência cotidiana mostra que, se há office, não há home. O cansaço nos convida ao desenquadre justo quando, aparentemente, nos tornamos somente um rosto enquadrado na tela do outro.
Nesse sentido, talvez a opus analítica esteja convidada a uma maior ênfase nas ditas funções de percepção (irracionais). Os tipos constituem um viés essencial que condiciona todo o processo psíquico, estabelece as reações habituais e, assim, determina não apenas o estilo de comportamento, como também a natureza da experiência subjetiva (Whitmont, 2014).
Essa nova clínica, por assim dizer, nos sensibiliza a outra rítmica: menos ênfase nas funções de julgamento (discriminação de padrões e valoração a respeito desses) e mais atenção à percepção de como a pessoa relata o seu lugar de experiência. O agora nos chama para o como desse lugar de experiência descrito. De que forma nos chega a quilômetros de distância aquilo que está sendo contado? E como (onde) isso nos atinge? É como se devêssemos estar receptivos a percepções mais sutis. Os conteúdos em si, os conceitos ou qualquer padrão organizador de juízo prévio parecem ter menos importância perante a necessidade de sentir a presença do outro em um momento no qual não estamos partilhando de um mesmo espaço. A atmosfera comum compartilhada tornou-se mais sutil, então - antes de qualquer outra coisa - é preciso identificá-la. Somente assim adentraremos num encontro verdadeiramente qualificado.
Diante da impossibilidade de estarmos fisicamente presentes, não devemos nos afastar em mais nenhum grau. Talvez essa seja a conotação que realmente nos interessa da imagem contemporânea de online all the time (conectados o tempo todo). A escuta clínica com pulmão é aquela capaz de sincronizar a respiração com cada oscilação na pulsação-narrativa.
Com a licença do mestre C. G. Jung, propõe-se aqui o exercício de idealizarmos um paradoxo teórico, já que os tempos são de exceção. Que sejamos capazes de imaginar um tipo sensitivo intuitivo, ou seja, capazes de traduzir intuitivamente o que nos chega através dos sinais denunciados no nosso próprio corpo a partir do contato cibernético com o outro.
É importante nos questionarmos se queremos mesmo vê-los e senti-los como que próximos, nos afetando, ou se apenas desejamos reafirmar conceitos, há muito apreendidos, sobre aquilo que deve configurar uma "tela de terapia". Questionarmo-nos a cada clique, para não estagnarmos diante do espelho, tendo em vista que os atendimentos virtuais nos expõem a nossa própria imagem durante toda a sessão.
Enfim, nos tornamos imagens na tela-mundo do outro. Façamos disso oportunidade para pulsarmos com cada novo mundo que nos convoque - quando apenas nos restara, aparentemente, a companhia de nossa própria tela com algoritmos viciados. Façamos disso oxigênio para o emergir de novos tempos. Como proclama um dos mais influentes pensadores da atualidade, o indígena brasileiro Ailton Krenak (2020), "temos que parar de nos desenvolver e nos envolver".
Assim, a pergunta ética que precisa ser feita por todos aqueles compromissados com o envolvimento clínico em tempos de atendimento remoto é: quem de nós faz-se capaz de acusar(-se) quando - a despeito da excelência do recurso de rede - não há conexão?
Referências
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Recebido: 07 jan
2022
1a revisão: 02 mar 2022
Aprovado: 11 mar 2022
Aprovado para publicação: 12 abr 2022
Nota do autor:
Artigo baseado em exposição oral do autor em Roda de conversa
organizada pelo Projeto Orbital - discussões clínicas em Psicologia
Analítica (SP) em 10 de abril de 2021
Conflito de interesses: O autor declara não haver nenhum interesse
profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação
a este manuscrito.
Minicurrículo: Mauro Fernandes Ribeiro de Oliveira - Psicólogo
clínico pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); pós-graduado
em Psicologia Analítica e candidato a analista pela Associação
Junguiana do Brasil (AJB). Docente de cursos de pós-graduação,
supervisor de casos clínicos e diretor do núcleo social de atendimento
psicoterápico da clínica Psiquê (Salvador/BA). E-mail:
maurofro@gmail.com