ESTUDO
DE CASO
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2022.vol07.0006
Cipó das almas: ayahuasca e experiência numinosa
Vine of souls: ayahuasca and numinous experience
Vid de las almas: ayahuasca y experiencia numinosa
Kátia Caroline Modena COUTO; Pedro Alegria Carrilho MARAMBIO; Daniel Françoli YAGO
Universidade Municipal de São Caetano do Sul - USCS. São Caetano do Sul, SP, Brasil
RESUMO
Trata-se de estudo de caso que sintetiza as principais conclusões de uma pesquisa empírica e qualitativa que teve como objetivo geral analisar as formas da experiência numinosa na vivência do ritual com ayahuasca. Os objetivos específicos foram observar e analisar quais são os símbolos que emergem do ritual e observar aspectos psicológicos a partir de entrevistas. Em relação à metodologia, foram entrevistados três homens, sendo um informante privilegiado e dois participantes de rituais do Santo Daime com ayahuasca, com idades entre 34 e 48 anos. Foi acordado com os dois participantes que elaborassem um desenho, após o ritual com a bebida, para expressarem suas experiências. Já o informante concedeu entrevista para esclarecer pontos não abordados pela literatura e pelo estado da arte dos estudos antropológicos e da psicologia analítica. A abordagem foi do tipo qualitativa e a análise dos resultados foi feita através de categorias analíticas. Em relação à técnica expressiva, foi realizado um estudo de conteúdo a partir do referencial teórico de Jung, Silveira e van Kolck. Nos resultados, atestou-se elementos e símbolos da experiência numinosa, bem como o aprofundamento de vivências centrais para o desenvolvimento e a individuação dos participantes.
Descritores: ayahuasca, símbolos, psicologia da religião, psicologia junguiana.
ABSTRACT
This is a case study that synthesizes the main conclusions of empiric and qualitative research carried out with the general objective of analyzing forms of numinous experience occurred during the ayahuasca ritual. Interviews were performed with the specific objectives of observing the symbols emerging from the ritual and analyzing their psychological aspects. Regarding methodology, three men within an aged between 34 and 48 years were interviewed, one of them a privileged informant, and the other two just participants of Santo Daime rituals with ayahuasca. It was agreed with these two participants that, after the ritual with the drink, they would elaborate a drawing to express their experience. The informant was interviewed to clarify topics not approached by literature and state of the art studies on anthropology and analytic psychology. The study was made with a qualitative approach and the analysis of the outcomes through analytic categories. Regarding the expressive technique, contents were studied from the point of view of theoretical referential of Jung, Silveira and van Kolck. In the results, elements and symbols of a numinous experience were attested, as well as the deepening of experiences central to the development and individuation of the participants.
Descriptors: ayahuasca, symbol, psychology of religion, Junguian psychology.
RESUMEN
Este es un estudio de caso que sintetiza las principales conclusiones de una investigación empírica y cualitativa realizada con el objetivo general de analizar formas de experiencia numinosa ocurridas durante el ritual de ayahuasca. Se realizaron entrevistas con los objetivos específicos de observar cuáles símbolos emergen del ritual y analizar los aspectos psicológicos. En cuanto a la metodología, se entrevistó a tres hombres con edades 34 a 48 años, uno de ellos un informante privilegiado y los otros dos, participantes de rituales del Santo Daime con ayahuasca. Se acordó con estos dos participantes que, después del ritual con la bebida, elaborarían un dibujo para expresar su experiencia. El informante fue entrevistado para aclarar temas no abordados por la literatura y los estudios de vanguardia sobre antropología y psicología analítica. El enfoque fue cualitativo y el análisis de los resultados realizado a través de categorías analíticas. Con relación a la técnica expresiva, se realizó un estudio del contenido a partir del referencial teórico de Jung, Silveira y van Kolck. En los resultados se constataron elementos y símbolos de la experiencia numinosa, como también la profundización de vivencias centrales para el desarrollo y la individuación de los participantes.
Descriptores: ayahuasca, símbolo, psicología de la religión, psicología junguiana.
Introdução
Este estudo de caso sintetiza as principais conclusões e procedimentos de uma pesquisa empírica e qualitativa que teve como objetivo geral analisar como se dá a experiência do numinoso na vivência do ritual que utiliza o chá de ayahuasca, um fenômeno que tem se popularizado e no qual percebe-se, em parte de seus frequentadores, uma busca por autoconhecimento através da ingestão da bebida. Como objetivos específicos, a pesquisa propôs a observação e a análise dos símbolos que emergem desse ritual, podendo ser este um ponto de partida para a compreensão dos elementos da cultura humana e observação de aspectos psicológicos a partir do relato dos sujeitos da pesquisa.
A pesquisa que deu origem a este trabalho foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, sob o número de registro 24372719.6.0000.5510.
Método
Para a realização desta pesquisa, foram entrevistados três homens, com idades entre 34 e 48 anos: um informante privilegiado, dirigente da Igreja do Santo Daime; e dois participantes de rituais do Santo Daime com ayahuasca.
O informante privilegiado concedeu informações e histórias específicas sobre sua tradição não abordadas na literatura e no estado da arte dos estudos antropológicos e de psicologia analítica. Os dois participantes foram entrevistados antes e depois do ritual com a ayahuasca. Eles também elaboraram desemhos para expressar suas experiências, após o uso da bebida.
Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, a análise dos resultados foi feita através de categorias analíticas; quanto à técnica expressiva, o conteúdo foi analisado a partir do referencial teórico de Edinger (1985/2006); Jung (1944/1991); Silveira (1981/2015) e van Kolck (1968).
Os conteúdos foram divididos de acordo com a sequência que compõe os ritos de passagem e que acompanha os sujeitos em suas transições do mundo social para o mundo cósmico: (i) a busca; (ii) símbolos e transformação; e (iii) o regresso ao profano, de acordo com a proposta de leitura da psicologia analítica para a experiência numinosa via ritual que, por sua vez, foi inspirada em van Gennep (1909/2011).
Antes de detalharmos essa sequência, vamos nos ater no tema da experiência numinosa e, em seguida, na relação entre ayahuasca e a espiritualidade.
A experiência numinosa
O termo numinoso foi cunhado inicialmente por Otto (1917/2007), que se ocupa da análise do caráter específico dessa experiência sagrada que ele descreve, a princípio, como irracional. Para o autor, o numinoso está presente em todas as religiões e se apresenta sempre a priori, por não ser localizável, mas sim personificado. Ao discutir os efeitos psicológicos procedentes desse fenômeno, Otto identifica o sentimento de pavor diante do sagrado e o descreve como tremendum e fascinans, experiência fenomenologicamente assombrosa, terrível, ou ainda, cativante e encantadora. O autor classifica o numinoso como aquilo que é qualitativamente diferente do que é natural, mundano, e que somente quando é vivenciado desperta na psique o sentimento de ela ser apenas uma pequena criatura em relação ao que se apresenta como o "totalmente outro".
Jung (1938/2012) introduz o conceito de numinoso em sua teoria a partir de Otto (1917/2007), quando define que a experiência numinosa relaciona-se diretamente com à religiosa, função da psique que torna possível o contato com o arquetípico. Jung considera o termo religião como "a atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do numinoso" (Jung, 1938/2012, p. 21), experiência esta que pode promover transformações na consciência.
A psique, ao ser tomada por essas emoções derivadas do contato com o arquétipo, produz um efeito de rebaixamento de nível mental, em que a consciência perde energia e o inconsciente adquire certa predominância, à medida que penetra no espaço vazio deixado na consciência. Também é assim que a percepção de espaço, tempo e psique são relativizados, o que, por sua vez, dá acesso ao sentimento de "conhecimento absoluto" característico de experiências numinosas, onde o espaço já não é mais o espaço e o tempo já não é mais tempo (Jung, 1951/2014).
A experiência de tempo e espaço proporcionada pelo inconsciente coletivo correlaciona-se com a visão antropológica que Eliade (1957/1992) igualmente concede à experiência do sagrado. Para o autor, o sagrado se dá através de hierofanias e está relacionado com a condição de suas manifestações ; ele também deve ser caracterizado como uma experiência primordial, um retorno à eternidade ou ao presente mítico, a um tempo correspondente à criação do mundo. Nesse sentido, o sagrado, ao se manifestar, revela-se como realidade absoluta e passa a orientar a experiência e a oferecer um ponto fixo em relação ao mundo dual/relativo que vivemos.
Eliade (1957/1992) aborda o indivíduo religioso a partir de duas dimensões específicas da experiência religiosa: a sagrada e a profana. Essas diferentes formas de ser no mundo foram alcançadas diante do posicionamento do sujeito em relação ao cosmos e significam diferentes situações existenciais vividas ao longo de sua história. Eliade (1957/1992) pontua ainda que, na modernidade, o humano encontra-se vivendo no cosmos dessacralizado. Imperaria, na atualidade, o mundo profano, caracterizado por tudo que é da ordem do comum, do caótico e do relativo. Ao se encontrar em um estado de ansiedade provocado pelas características do profano, o sujeito tende a evocar o sagrado, por meio de formas ou figuras sagradas como aquelas vivenciadas pelos ritos, cerimônias e festas, na intenção imediata de pôr fim à tensão provocada pela dualidade, buscando um ponto de apoio absoluto que o oriente.
Nesse sentido, a passagem de um estado ao outro, ou seja, do profano ao sagrado, ocorre por meio da "solução de continuidade de espaço", simbolicamente representado por portas, cipós, montanhas, pontes e afins. Esses locais sagrados caracterizam-se como lugares de ligação entre a terra e o céu, firmando-se como Axis Mundi ou o "ponto fixo" , e possuem valores existenciais para o indivíduo religioso, pois, no interior do espaço sagrado, o mundo profano é transcendido, apresentando-se como solução de continuidade do espaço, onde a dualidade se funde - transcende -, tornando sagrada a vida espiritual profana do ser (Eliade, 1957/1992, p. 25).
Jung (1938/2012) cita que grande parte dos objetivos dos rituais religiosos é provocar conscientemente a ação do numinoso por meio de diversos artifícios, como evocações, encantamentos, sacrifícios, meditação, entre outras práticas. Assim, a experiência sagrada e a experiência numinosa mutuamente se atritam e se potencializam.
Geertz (1973/1989) define cultura como um sistema de significados transmitidos historicamente, incorporados em símbolos que, ao serem herdados, se expressam em formas simbólicas pelas quais os indivíduos se comunicam, perpetuam e praticam seus conhecimentos e suas atividades em relação à vida. Segundo ele, nos estudos de religião, os símbolos sagrados de um povo são aqueles que sintetizam seu ethos, que corresponde ao "tom, [a]o caráter e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticos, além de sua visão de mundo" (Geertz, 1973/1989, p. 66). Formula-se assim a compatibilidade entre um estilo de vida e sua metafísica, sustentando-se mutuamente.
Ayahuasca e a espiritualidade
A prática religiosa organiza as ações humanas em relação à ordem cósmica imaginada, projetando imagens desta no plano da experiência humana. Nesse sentido, a utilização das caracterizadas plantas de poder tem servido de auxílio ao indivíduo desde tempos imemoriais. Esse uso se dá para fins de cura, cerimônias, comemorações, adivinhações e comunicação com o sagrado. Entre estas plantas de poder, encontram-se o cipó Banisteriopsis caapi e o arbusto Psycotria viridis que passam por um processo de cozimento e se transformam na bebida ayahuasca. A palavra "ayahuasca" vem do idioma quechua, onde "aya" significa"alma ou espírito", e "huasca","cipó", daí vem o "cipó das almas" (Metzner, 2002).
Fundada em 1930 pelo ex-seringueiro Irineu Serra, em Rio Branco (AC), o Santo Daime foi a primeira religião que fez uso da ayahuasca. Posteriormente, em 1945, viu-se o nascimento de outra religião ayahuasqueira, também na capital acreana: a Barquinha, de Daniel Mattos. Na sequência, em 1961, formou-se a União do Vegetal, ainda outra religião ayahuasqueira, criada por Gabriel da Costa. Todas utilizam em seus rituais elementos do catolicismo, do curandeirismo amazônico e do espiritismo.
A ayahuasca começou, então, a entrar nos centros urbanos brasileiros, como parte de de rituais exclusivos das religiões mencionadas e também de rituais em casas espiritualistas, além de ser usada em atendimentos psicoterapêuticos, em contextos artísticos, entre outros (Labate, 2005).
Atualmente, a cultura e a experiência ayahuasqueira estão sendo discutidas, a partir de uma perspectiva científica. O livro "O uso ritual das plantas de poder", organizado por Goulart e Labate (2005), é um dos mais consultados. Nele, destaca-se o prefácio de Langdon (2005) e sua ideia de etnoconhecimento, que engloba o tema do ritual, aliado ao sistema de conhecimentos chamados tradicionais, "num esforço de relativizar nossa ciência e ressaltar que ela não é a única que tem domínio sobre a verdade" (Langdon, 2005, p. 19).
Langdon analisa a construção do conhecimento acerca das plantas de poder, do xamanismo e seus interesses, em compasso com os movimentos sociais, abarcando a compreensão e o respeito pela sabedoria de outras culturas. Trata-se de uma visão integrativa da pessoa que ultrapassa as reduções biofisiológicas e essencialistas da ciência eurocentrada. Para Langdon (2005), nem a ciência, nem o etnoconhecimento seriam caminhos unilaterais em direção à verdade. Ambas as formas de conhecimento andariam juntas, sustentando suas possíveis tensões existentes, à medida que são considerados concomitantemente os processos biológicos, psicológicos e culturais.
Luna (2005) ressalta a semelhança entre a molécula de serotonina e a N-dimetiltriptamina (DMT), molécula presente na ayahuasca que, ao ser ingerida, apresenta efeitos tanto no nível perceptível como no nível emocional, oferecendo ao indivíduo o acesso a uma fonte inesgotável de informações, espaços sensoriais, transformações morfológicas de humano para não-humano, ou ainda, experiências"místicas" de muitos tipos. Ainda na mesma publicação, Grünewald (2005) afirma que não se pode abordar os enteógenos, visualizando apenas suas propriedades farmacológicas, faz-se necessário compreender "que est[e]s são veículos do contato com um mundo transcendental perceptível somente através da experiência mística" (Grünewald, 2005, p. 271). Vale ressaltar que o termo "enteógeno" tem origem na palavra grega entheos, "Deus dentro", usada para se referir a elementos da natureza que possuem poderes visionários. Ao tratar dessas substâncias que direcionam a atenção do sujeito para aquilo que se interpreta como sagrado ou espiritual, o autor emprega o termo experiências "psicointegradoras", cunhado por Winkelman, para plantas que têm efeitos similares àquelas usadas para produzir a ayahuasca. Grünewald (2005) menciona ainda que essas experiências têm a capacidade de promover uma vivência mítica em que o indivíduo experimenta os mistérios de uma realidade que, quase sempre, observamos de forma ordinária.
Jung (1950/2008) descreve a função transcendente como responsável pela formação de símbolos, que têm como finalidade unir pares de opostos, expressando da melhor maneira possível o inconsciente na consciência. Essa função é "uma manifestação de energia produzida pela tensão entre contrários, formando uma sucessão de processos de fantasias que surgem espontaneamente em sonhos e visões" (Jung, 1926/2014, p. 92). A razão subjacente a essa função mostra que, para prevenir perigosas perdas de energia, o inconsciente busca complementar a consciência, acrescentando-lhe o que falta para a totalidade. Nesse caso, ao entrar em contato com as potências ativas numinosas do inconsciente coletivo, o ego recebe toda a sabedoria da experiência de incontáveis milênios depositadas em suas estruturas psíquicas (Jung, 1926/2014).
A função transcendente é parte motriz do processo de individuação que, para a teoria analítica, é elemento fundamental do paradigma de desenvolvimento da psique, no qual o sujeito busca tornar-se si mesmo. De acordo com Santos (2016), a ayahuasca é uma bebida-veículo para o interior de si, com potencial de evocar símbolos referentes ao processo de individuação, ao proporcionar transformações na vida do indivíduo de forma consciente, contribuindo para que ele rompa com visões limitantes sobre si próprio e o mundo, ao passo que começa a resolver conflitos com mais fluidez.
Dentro do processo denominado de individuação, há uma interessante correspondência de suas premissas com o simbolismo alquímico, cujas imagens expressam as experiências de transformação que ocorrem na psique durante o desenvolvimento da personalidade. Ao se debruçar sobre o assunto, Jung (1944/1991) constatou que, para os alquimistas, a real natureza da matéria era desconhecida e, portanto, todo seu simbolismo seria fruto da psique inconsciente, ou seja,"todo desconhecido e vazio é preenchido com projeções psicológicas; como se o próprio fundamento psíquico do investigador se espelhasse na obscuridade" (Jung, 1944/1991, p. 245). Já Edinger (1985/2006) cita que a alquimia, como um todo, oferece uma anatomia da individuação, por meio de suas imagens que se tornam mais significativas para aqueles que passam por uma experiência pessoal do inconsciente. Ademais, em seu trabalho"Imagens do inconsciente", Silveira (1981/2015) acrescenta que o simbolismo alquímico constitui uma linguagem do inconsciente e o utiliza como uma forma de abordar os desenhos elaborados por seus pacientes.
O antropólogo van Gennep (1909/2011) mostra que são os ritos que oferecem os contornos do próprio ato de se viver, em sucessão de etapas mais ou menos da mesma natureza, que podem envolver"nascimento, puberdade social, casamento, paternidade, progressão de classe, especialização de ocupação e morte" (van Gennep, 1909/2011, p. 24). Para cada uma dessas etapas, é elaborado um conjunto de cerimônias que possuem um mesmo objetivo: levar o indivíduo de uma situação determinada para outra situação igualmente determinada, de forma que ele vivencie uma oscilação entre o profano e o sagrado, modificando-se através do tempo por ter atrás de si várias etapas que tornam possível atravessar diversas fronteiras de sua própria existência e que também marcam o contexto religioso.
A partir do consumo da ayahuasca, Naranjo (2018) observa que há uma potencialização das representações visuais e das fantasias, que se diferenciam das visões e fantasias dos sonhos, por permitirem ao indivíduo falar e refletir sobre elas, à medida que elas ocorrem. Portanto, ao perceber a unidade subjacente dos conteúdos das imagens relatadas e as associações que os participantes estabelecem com elas, Naranjo (2018) nomeou-as de experiências míticas, identificando que os conteúdos dessas imagens proveem da camada mais profunda da psique, que Jung chamou de inconsciente coletivo e cujos conteúdos são imagens arquetípicas. Como exemplos, no caso do consumo da ayahuasca, observou-se a identificação empática com animais e com o tema da morte - que se relaciona com visões de escuridão e a cor preta.
Naranjo (2018) destaca que os símbolos e vivências acerca do tema da morte transmitem uma realidade impessoal da força vital, que conta com a morte como sua implicação inerente. Dessa maneira, considera que:
O mundo típico da ayahuasca é o comer e ser comido; como se todos soubéssemos, em nosso ser mais íntimo, sem necessidade de refletir sobre ele, que a vida é um consumir-se a si mesmo, e que vivemos à medida que nos entregamos a uma morte potencial (Naranjo, 2018, p. 202).
Como dito, o composto da ayahuasca deriva da decocção de duas espécies vegetais: o cipó Banisterio psiscaapi e as folhas da Psicho triaviridis (a mais utilizada). Essa junção é fundamental para que o agente psicoativo DMT, presente nas folhas, consiga atuar no organismo sem ser degradado pela substância inibidora monoamina oxidase (IMAO) presente no cipó. Como aponta Santos (2007), a DMT encontra-se em raízes, caules e folhas de diversas plantas e também está presente em tecidos de mamíferos, animais marinhos e anfíbios. Em humanos, a substância pode ser encontrada no sangue, na urina e no fluído cérebro-espinhal.
Apesar da presente pesquisa ser um estudo de caso particular em um determinado grupo que faz uso dessa substância específica, deve-se constar que a manifestação do numinoso, assim como o contato com os arquétipos do inconsciente coletivo não são particulares da ingestão da ayahuasca. Existem precedentes, estudos e práticas que desencadeiam a experiência pessoal nesse fenômeno, como a imaginação ativa, os sonhos, alucinações e fenômenos sincronísticos (Jaffé 1983/1995). A seguir, detalharemos a sequência de conteúdos que compõem os ritos de passagem do indivíduo: (i) a busca; (ii) símbolos e transformação; e (iii) o regresso ao profano.
A busca: participantes e chamados
O informante privilegiado tem 40 anos, é formado em Direito e é dirigente de uma igreja do Santo Daime. Aos 22 anos teve seu primeiro contato com a doutrina do Daime e o descreve como uma experiência intensa que gerou um sentimento de pertencimento. Escolheu seguir a doutrina por fazer bem e por estar em constante processo de aprendizado. Desde 2012 é dirigente do espaço.
O participante 1 também é formado em Direito, tem 48 anos e administra atividades de acolhimento espiritual que oferece a ayahuasca para dependentes químicos de cocaína, álcool e crack desde 2000. Em seu primeiro contato com a bebida, teve sua primeira miração - visão provocada pelos efeitos do chá -, com uma cirurgia feita em seu corpo. Dentro das cerimônias, vem conseguindo trabalhar sua dependência com álcool e segue no Daime há 27 anos.
O entrevistado 2 tem 34 anos, leciona aulas de matemática e física e também realiza trabalhos em que oferece a ayahuasca dentro de um contexto espiritual e na presença de convidados indígenas. Ele conta que consumia drogas e se sentia depressivo, até que decidiu mudar de vida e conheceu a bebida com os indígenas, o que trouxe transformações em sua vida.
Ambos os entrevistados relatam momentos em que vivenciaram insatisfação pessoal, e que a busca foi se constituindo à medida que o caminho da ayahuasca passou a ser trilhado. O participante 2 conta que, inicialmente, buscava um novo estilo de vida, pois fazia uso de substâncias químicas e, concomitantemente, sentia-se depressivo. O primeiro contato com a ayahuasca do participante 1 aconteceu por curiosidade. Após passar por diversas religiões, ele afirma que:"E aí acabou minha busca. Na verdade, ela começou".
O informante privilegiado descreve que seu contato com a ayahuasca se deu por uma escolha pessoal, ligada a uma busca para compreender seu papel no mundo.
A partir de suas trajetórias dentro de diversas instituições religiosas, os participantes da pesquisa apresentaram sentimentos de satisfação, pertencimento, felicidade, liberdade e paixão dentro de organizações que fazem o uso da ayahuasca, demonstrando que a bebida desencadeia um processo de formação de símbolos vivos como menciona Jung (1946/2013). Tais símbolos têm como principal função a união dos pares de opostos, conscientes e inconscientes. Dessa forma, essas instituições religiosas, assim como seus símbolos, contribuem com uma estrutura para que o indivíduo encontre sentido em sua experiência de estar vivo, para que encontre sentido no interior de seu ser.
Essas questões observadas marcam um significativo momento de transição que vai ao encontro do que Geertz (1973/1989) pontua em relação à prática religiosa e seus símbolos. Essa transição diz respeito à modificação de comportamento, marcando o início de uma nova busca espiritual, em que os participantes adquirem novo sentido para sua perspectiva de mundo, tornando possível uma postura de persistência ao lidarem com suas questões pessoais e com a dependência química presente nos relatos.
Símbolos e transformação
Em relação a alguns dos símbolos sagrados de sua doutrina, o informante privilegiado descreve que o salão da igreja tem formato de uma estrela hexagonal e é dividido no meio, com mulheres de um lado e homens de outro, e conta ainda com uma mesa de seis pontas no centro. Sua porta é virada para o leste e na mesma direção, em frente à casa, está o cruzeiro, símbolo máximo de sua tradição. Quando perguntado a respeito dos símbolos que sustentam sua visão de mundo e seus conhecimentos, ele diz que representam esperança e unidade com o grupo, de acordo com a disposição dos participantes.
Nessa descrição, pode-se observar o que Eliade (1957/1992) chama de"solução de continuidade de espaço", que oferece um"ponto fixo" ao sujeito do profano por meio da arquitetura, da organização e dos elementos que o compõem. Sua proposta é que a tensão gerada pela relatividade da vida mundana possa ser transcendida e que o sagrado possa se manifestar.
No entanto, experiências tidas como sagradas têm um caráter de desvelamento e apresentam-se como hierofanias (Eliade (1957/1992), percebidas pelo informante privilegiado da seguinte maneira:"pra mim, o sagrado é aquilo que vem de tempos imemoriais". Tendo em vista que se trata aqui de um fenômeno provocado pela ingestão da ayahuasca, o participante 1 descreve a hierafania dentro de sua tradição como um veículo de expansão e de condução ao encontro com Deus que, segundo ele, o habita em seu interior:"o Daime é apenas um veículo, porque a nossa ligação direta é com Deus. [...] Daime te conduz. [...] Então o Daime faz essa coisa né? Expandir dentro da gente. É o que tá dentro".
Quando perguntado ao informante privilegiado e ao entrevistado 2 a respeito da experiência do sagrado, observa-se uma dualidade juntamente com a ideia de algo que está acima e é qualitativamente diferente do que está abaixo deles. Assim, nota-se um movimento que Jung (1951/2014) chama de participação mística, que permite o acesso ao"conhecimento absoluto", como cita o informante privilegiado: "é ancestral, né? E que não é construído pela cultura, né? Eu acho que o sagrado não é cultural". Nele também se percebe o que Jung (1912/2013) chama de vivência arquetípica - imagens do inconsciente coletivo que possuem pronunciadamente um caráter sagrado. Nesse mesmo sentido, o informante privilegiado descreve: "Então, eu acho que esse sagrado eu consigo acessar quando eu acesso meu 'Eu superior', né?". Enquanto o entrevistado 2 afirma: "Mas eu creio que era algo… Acima de mim aquilo lá, sabe?". Essas experiências parecem fundir o sujeito a um centro de integração, ontologicamente diferente do estado profano, que Otto (1917/2007) chama de "totalmente outro" e que desperta um sentimento de ser apenas uma criatura diante do todo. Em relação ao despertar desse sentimento, o entrevistado 1, após o relato de uma experiência, afirma:"e passei a ver que a gente não é nada". Também o informante privilegiado descreve:
Então em determinados momentos eu consigo me desprender das minhas amarras materiais e dos meus julgamentos e tal, e consigo acessar um nível de conhecimento e de clareza que me faz ter um estágio que não seja necessariamente de clareza a respeito do conhecimento sobre o todo, mas de minha insignificância diante do todo, né?
Para o informante privilegiado e o participante 1, ambos fardados pela doutrina, esse desprendimento, assim como a postura de recolhimento e silêncio trazem um sentido de ordem que promove um estado mais fino e menos poluído, quando alcançada segundo algumas práticas que, dentro da doutrina, envolvem abstinência de relações sexuais e restrições alimentares, permitindo que se rompa com padrões de vícios e que, por fim, garante certa qualidade dessa experiência, como descreve o participante 1:
Vamos dizer assim que eu tenho todas as faixas vibracionais do universo passando por mim, né? Tanto da mais baixa quanto da mais alta. Então quando eu consigo acessar essa mais alta, eu consigo experienciar isso que pra mim é o sagrado.
Há nessas narrativas o relato de uma totalidade superior onticamente indescritível, nomeada por Jung (1946/2013) como a experiência do arquétipo do Si-mesmo que, por se tratar de uma vivência organizadora da psique, também pode vir a ser um receptáculo da graça divina, percebida como algo tremendo e fascinante. Observou-se que essas experiências são descritas inicialmente como um processo de limpeza pelos participantes, como um expurgo que pode provocar reações fisiológicas ou psicológicas e que podem envolver estados de ansiedade. Essas experiências aproximam-se daquilo que Jung (1944/1991) entende por alquimia - um jogo projetivo de imagens correspondente ao processo de individuação. A imagem relatada aqui pelo participante 2 relaciona-se diretamente à fase da mortificatio, quando uma etapa da vida do sujeito precisa ser abandonada e superada:
Na verdade o cigarro nesse processo eu via um caixão, e esse caixão, cada cigarro que eu ia fumando [...] Era um prego para esse caixão, sabe? Então eu via este caixão sendo pregado [...] Eu vomitava nicotina assim, eu sentia a nicotina que era… uma gosma preta. Eu joguei meu maço de cigarro… Eu vomitei. [...] Eu vi toda a minha vida, sabe? [...] Nesse dia eu saí de lá como se eu nunca tivesse fumado na minha vida.
Os efeitos do contato com a experiência arquetípica, apesar de não serem claros, nunca são indiferentes. No relato do participante 2, ele menciona ter tido a visão de uma bruxa:"Aí eu olhei pra essa minha amiga e tava essa minha amiga com esta bruxa junto dela". Em relação ao processo, comenta:
Eu acho que… eu sou matemático, né? Então eu acredito muito nas coisas bem concretas, né? E a partir do momento que você vê uma coisa que você não consegue explicar ou não tem uma solução lógica para aquilo, acho que isso daí causa um pouquinho de… pânico, não né?
Ao mencionar a primeira vez em que teve contato com essa imagem, o paciente 2 relata ter perdido completamente o apetite, chegando a emagrecer nove quilos. Ele comenta ainda que:"Eu tô meio, tá assim, né? Eu tô meio balançado, mas pelas coisas que eu tô vendo, né? Que, até então, não estavam tão claras assim na minha cabeça, né?". Essa experiência representa o efeito tremendum do contato com o arquétipo, que possui um caráter numinoso ou espiritual e que motivou o participante 2 a realizar um trabalho de ayahuasca com o auxílio dos índios: "Eu fui procurar neste trabalho foi mesmo pra identificar isso daí, né? Se eu tava vendo coisa da minha cabeça, ou se eu tinha entrado mesmo, num plano assim mais espiritual, né?". Jung (1950/2008) afirma que essas experiências também podem devastar o sujeito, afetando-o de forma perigosa quando não conscientizadas.
Contudo, os símbolos emergidos em ambos os desenhos dos participantes, Sol, Lua e estrela (Figuras 1 e 2), representam um centro da personalidade essencialmente distinto do eu, ao demonstrarem sua natureza numinosa, tratando-se assim de símbolos do Si-mesmo, e que, como apontado por Santos (2016), revelam elementos igualmente simbólicos do processo de individuação. Ainda sobre tais elementos, traçando um paralelo com o "Opus alquímico", Sol e Lua podem representar a fase da coniunctio, quando o sujeito está psicologicamente preparado para de maneira consciente trazer à luz a união de opostos ocorrida em nível inconsciente. Nesse sentido, ao ser interpelado sobre esses dois elementos no desenho, o participante 1 comenta:"Porque se a gente não tiver consciente, a gente não enxerga. Tudo muito turvo. Então o Sol é na minha cabeça. É a força pulsante. A Lua, com certeza, ela é esse manto protetor de tudo isso, desse Sol".
Figura
1. Desenho do participante 1
Fonte: Participante 1 (2019).
Figura
2. Desenho do participante 2
Fonte: Participante 2 (2019).
A princípio, esse processo pode emergir como uma etapa de limpeza dos conteúdos profanos, o que possibilitaria, posteriormente, vir a ser a síntese de opostos. Dessa forma, a partir desses elementos, observa-se uma etapa superior da união de opostos nas falas dos dois participantes através do tema casamento, que surge quando perguntados a respeito do significado da ayahuasca. O participante 1 descreve como "deu um casamento perfeito". Na fala do entrevistado 2, "Acredito que ela é uma esposa minha, eu casei com ela". Essa fase na linguagem alquímica é denominada por rubedo, quando o casamento do Sol com a Lua é consumado dentro do processo de transformação, como aponta Silveira (1981/2015).
Outra temática observada foi a da união do animal com o vegetal, ilustrada pelo círculo de humanos em torno da árvore e que o participante 1 percebe como"um coração do mundo". Esse símbolo, assim como os cipós entrelaçados com uma mulher são imagens cosmológicas que Eliade (1957/1992) relaciona ao Axis Mundi e que proporcionam uma ruptura na homogeneidade do espaço, ou seja, simbolizam uma abertura pela qual torna-se possível a passagem de uma região cósmica a outra. Como cita o participante 1:"A gente faz florescer para passar pro reino do Sol, da Lua e das estrelas, né? Então, é uma luta de todo ser humano, né? Essa ligação com o mundo de Deus".
Já o participante 2 relata que essa passagem foi sentida como um clarão que o derrubou no chão:"[...] eu não conseguia ver nada dos lados, só esse monte de cipó com algumas folhas, e no centro começou a surgir essa… essa santa". A imagem da mulher no desenho do participante 2 (Figura 2) é simbolizada como uma imagem divina:"associei muito a Nossa Senhora da Aparecida". Para Jung (1944/1991), esse "mundo de Deus", descrito pelo participante 1, assim como a"santa", referida pelo participante 2, são símbolos do Si-mesmo. Seus efeitos são variados e, em relação à sensação frente à imagem da santa, o participante 2 menciona que:"Era boa. Era alguma coisa que estava completando mesmo, por dentro".
Para Jung (1964/2013), essas representações podem estar relacionadas ao curso da própria função transcendente que atua por via compensatória, integrando as dualidades e polaridades do mundo profano. Nesse caso, para o participante 1, o caráter psicointegrador gerado pela experiência da ayahuasca tem como objetivo alcançar Deus:
Quero encontrar a vida eterna. Que é a não material. O fim da dependência da matéria. A felicidade suprema. [...] E assim devemos estar, evoluindo. Fazendo um espiral que suba, que não fique girando em círculo no mesmo lugar. Então a gente tá sempre em espiral.
Outros elementos indicam experiências unificadoras como essas que, ao serem acessadas, podem gerar um estado de transcendência no indivíduo. Tal cura não necessariamente refere-se à cura como a concebemos, mas é compreendida pela união das partes desintegradas, causada pela própria vida profana.
Dessa forma, o informante privilegiado relata o caso de uma mulher com câncer que busca o Daime para obter a cura de sua doença. Segundo o relato da mulher, a cura aconteceu por meio de um processo de quase morte em que, em sua miração, ela viu todas as células de seu corpo sendo curadas. Após esse processo, sua doença volta a reincidir em dois anos e ela volta para um novo ritual em que diz ter recebido novamente a cura. O informante conta que:
O câncer ia levar o corpo dela, mas a cura dela ela tinha alcançado, e que ela não tinha mais medo, né? Acho que dois meses depois, mais ou menos, ela fez a passagem, com sorriso no rosto, né? [...] Porque ela falou que a cura dela não era material, a cura dela era do espírito, e que ela tinha alcançado essa cura e que não precisava de mais nada, né? Que o câncer podia pegar o corpo dela que ela não tinha mais nenhum apego com o corpo.
Assim, o processo simbólico "é uma vivência na imagem e da imagem" (Jung, 1950/2008), sincronicamente ou não, que pode se comprimir em uma única vivência ou se desenvolver por anos, a depender da situação e condição do indivíduo. Contudo, a formulação humana a respeito de um arquétipo é um recurso para integrá-lo à consciência e, racionalmente, dar sentido a ele, porém, de modo algum é sua parte essencial, devido a sua autonomia e numinosidade.
O regresso ao profano
Na volta à vida cotidiana, os entrevistados manifestaram a vontade de mudar, de superar a dependência química, de buscarem novas atitudes, além do desejo de ingressarem como operadores dentro da tradição. Eles mudaram a maneira de se expressarem e de encarar as próprias vidas e a dos outros. Isso é consideravelmente intenso na fala de nossos participantes, assim como na menção que fazem a outras pessoas, não entrevistadas por nós que igualmente atestam viver mudanças "externas e internas".
O informante privilegiado relata uma cerimônia particular com um usuário de crack. A partir desse contato, fardou-se dentro da doutrina e cursou psicologia. Atualmente trabalha na comissão de saúde mental da própria igreja. O participante 1 conta que começou a ter mais paciência e a honrar sua doutrina depois dessa experiência. O participante 2 menciona que viu a imagem de uma santa, acreditando ser a Madre Ayahuasca, dizendo para ele continuar nesse caminho. Nesse processo, no contato com a imagem sagrada da santa, ele conta da sua superação da dependência química do cigarro de um dia para o outro. O encontro com a santa trata-se do contato com as imagens arquetípicas do Si-mesmo em seu efeito numinoso, representando para Jung uma experiência religiosa que promove a purificação e uma nova percepção sobre si próprio, promovendo a consciência de transformação do indivíduo, na volta ao mundo profano.
Considerações finais
Esta pesquisa dedicou-se a refletir simbolicamente sobre o recorte do processo ritual tal como mencionado em nossos objetivos e não pôde aprofundar-se em elementos posteriores, como entrevistas ou atividades expressivas, dedicadas a obter mais informações a respeito de uma possível permanência do estado de númen. No entanto, sabe-se que todos os participantes já estavam, há algum tempo, na tradição ayahuasqueira e permaneciam, inclusive, por sentirem benefícios em seus modos de vida e, acima de tudo, por terem encontrado nela um caminho de sustentação e até mesmo de esclarecimento de seus agonismos e dualidades. Afinal, por definição, uma vez que a numinosidade é vivida, o regresso à vida profana jamais é o mesmo: como em uma espiral, e não um círculo, até se pode retornar a um mesmo lugar, mas este lugar não é mais igual porque não é mais vivenciado pela mesma pessoa ou ponto de vista.
À guisa de recomendação para pesquisas futuras sobre as temáticas aqui abordadas ou questões que não pudemos tratar plenamente em razão de nosso recorte e disponibilidade, sugerimos alguns pontos que podem apontar para reflexões inspiradas e úteis: aprofundamento dos critérios específicos relativos à qualidade de vida antes e após a realização dos rituais, por membros mais jovens e mais velhos da tradição; abordagens experimentais que se utilizem do arcabouço simbólico junguiano para melhor entender os processos íntimos do efeito do DMT em contexto ritual-sagrado; abordagens qualitativas e comparativas sobre as diferenças e semelhanças da dimensão psicodélica da substância em relação a outras (psilocibina, LSD, MDMA, mescalina) e a maneira como podem compor os caminhos para novos tratamentos psicológicos; e, talvez o mais urgente dado o contexto político, estudo do uso das plantas dentro de um escopo de crítica anticolonial e antipatriarcal da cultura racializada brasileira como uma frente em si de uma psicologia crítica às mazelas e violências estruturais da sociedade brasileira.
Nesta pesquisa, o processo de transformação pessoal denominado numinoso pôde ser percebido nos símbolos do Si-mesmo evocados em ambos os desenhos, representados pelos elementos Sol e Lua, além das narrativas a respeito destes mesmos elementos que correspondem ao processo de transcendência descrito por Jung (1912/2013), com a união de pares de opostos.
As experiências dos participantes puderam ser sintetizadas em três momentos: a busca; símbolos e transformação; e o regresso ao profano. Simbolicamente, a passagem de um estado a outro foi compreendida pelos participantes por meio dos elementos cipó e árvore do mundo e, inicialmente, foi vivida como uma purificação do corpo e da mente, o que permitiu um estado sublime de abertura para a passagem.
Através do numinoso, pode-se vivenciar a experiência de unidade e totalidade. Nesta pesquisa, ela adquiriu a dimensão da experiência do sagrado, juntamente com os símbolos vivenciados pelos participantes, representações da unidade subjacente a essa experiência integradora da psique. Esperamos ter contribuído para uma reflexão sobre como as dualidades da vida profana podem ser superadas momentaneamente, confirmando nossa hipótese de que é possível que o numinoso manifeste-se em rituais com ayahuasca.
Referências
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Recebido: 23 jun
2022
1a revisão: 01 ago 2022
Aprovado: 03 ago 2022
Aprovado para publicação: 24 ago 2022
Conflito de
interesses: Os autores declaram não haver nenhum interesse profissional
ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a
este manuscrito.
Minicurrículo: Kátia Caroline Modena Couto - Universidade
Municipal de São Caetano do Sul. São Caetano do Sul/SP. Graduação
em Psicologia pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul - USCS.
Psicoterapeuta junguiana. Atualmente dedica-se à clínica e aos
estudos da intersecção entre psique e natureza. Paraty/RJ, Brasil.
E-mail: modenakatia@gmail.com
Pedro Alegria Carrilho Marambio - Universidade Municipal de São Caetano
do Sul. São Caetano do Sul/SP. Graduação em Psicologia
pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul - USCS. Psicoterapeuta
fenomenológico-existencial e integrante do Núcleo de Estudos em
Fenomenologia-Existencial do ABC. Paraty/RJ, Brasil. E-mail: contato.pedroalegria@gmail.com
Daniel Françoli Yago - Universidade Municipal de São Caetano do
Sul. São Caetano do Sul/SP. Mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP; graduação
em Psicologia pela PUC-SP. Psicoterapeuta junguiano, tradutor e professor do
curso de Psicologia da Universidade Municipal de São Caetano do Sul -
USCS. São Paulo/SP, Brasil. E-mail: danielyago@gmail.com