RESENHA
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2023.vol8.186

 

Direção: Travon Free e Martin Desmond, 2021. (Estados Unidos da América)

 

Two distant strangers Direction: Travon Free and Martin Desmond, 2021. (United States of America)

 

Dos estraños distantes Dirección: Travon Free y Martin Desmond, 2021. (Estados Unidos de América)

 

 

Aline Maria Simões DE COSTER

Rio de Janeiro/RJ, Brasil

 

 

Introdução

Os problemas endêmicos que afligem as sociedades liberais são envoltos em uma cortina de fumaça com a crença de que determinados indivíduos deveriam se adaptar, mudar e melhorar, enquanto outros permaneceriam ditando a realidade socioeconômica. Massivamente vem sendo propagado o ideal de que olhar para dentro de si é a única solução para as doenças sociais do mundo de hoje.

No drama de ficção "Two Distant Strangers" ["Dois Estranhos"], com roteiro de Travon Free e direção de Martin Desmond Roe, o bem-sucedido designer gráfico Carter James, um homem negro, faz diversas tentativas frustradas de voltar para casa, mas se vê forçado a reviver um confronto mortal com o policial Merk, um homem branco do Departamento de Polícia de Nova Iorque.

Certa noite, Carter conhece Perri, uma mulher negra que o leva para casa e eles ficam juntos até o amanhecer do dia seguinte. Ao acordar, Carter tenta sair do apartamento enquanto Perri ainda dormia, porém, ela desperta e, para evitar qualquer mal-entendido, Carter permanece com a mulher por mais um tempo. Para poder voltar para sua casa, Carter alega que seu cachorro estaria sozinho. No entanto, ao sair da casa de Perri, Carter observa seu cão pelo telefone celular e o alimenta através de um sistema síncrono de monitoramento remoto. Ao chegar à rua, Carter esbarra em uma pessoa, que derrama uma bebida que carregava na sua própria camisa. O impasse entre Carter e essa pessoa chama a atenção do policial Merk, que pergunta se Carter estava fumando um cigarro de maconha. Ao observar que Carter carrega um maço de dinheiro, o policial quer revistar sua mochila e eles começam a discutir, logo entrando em um conflito corporal. O policial imobiliza e sufoca Carter, que ainda diz "não estou conseguindo respirar" e depois morre.

O filme mostra Carter despertando novamente, diversas vezes após ser assassinado pelo policial, em um looping interminável de violência física, violência verbal, violência psíquica e racismo que sempre termina no seu assassinato. Nas abordagens do policial, há uma progressão na violência que ele usa em resposta às reações de Carter, até o desfecho final com a morte do negro.

A cada morte, um déjà vu. O tempo parece regredir oferecendo a Carter uma nova chance. A princípio, ele estranha cada regressão, mas segue adiante, buscando entrar em acordo com o policial para não ser morto novamente, sempre tentando fazer algo diferente para alterar o final da história. As tentativas, porém, são inócuas. A interação de Carter com o policial resulta sempre na sua morte e, em seguida, no despertar ao lado de Perri, na mesma cama.

Nada parece mudar o resultado fatídico e, na centésima repetição, Carter conclui que "se não posso vencê-lo, juntar-me-ei a ele", aceitando que cabe a ele, o negro, o esforço para compreender que o policial branco está apenas fazendo seu trabalho.

Após ser morto 99 vezes, Carter decide discutir a situação com o oficial Merk. Em aparente ato de bom mocismo, o policial aceita levar Carter para casa, a fim de que nada aconteça. Durante o deslocamento, protagonista e antagonista têm a oportunidade de estabelecer uma conexão empática. De certa forma, a relação amigável dos personagens nos induz à apressada constatação de que estratégias pontuais desconstroem atitudes estruturais. Consolida-se a idealização de bondade do homem branco encarnado pelo personagem Merk.

A história aparenta estar caminhando para um final pacífico em que Carter sobreviverá e encontrará seu cão. Porém, acontece uma reviravolta na película que reafirma a manutenção do looping de racismo estrutural profundamente presente na sociedade estadunidense. Ao chegarem à frente do prédio, Carter desce do carro e agradece a carona. Porém, o policial branco atira em Carter pelas costas. Carter, o homem negro cambaleia, cai no chão e termina novamente morto pelo homem branco. Merk diz: "Eu te vejo amanhã, garoto!". O sangue de Carter sobre a calçada ganha a forma do continente africano. É o sangue de toda uma nação. Fica claro que Merk nunca iria deixar de fazer o que aprendeu ao longo de sua carreira na polícia: um homem negro é sempre um suspeito e deve ser eliminado.

A construção política de hegemonias de pensamento estrutura a subjetividade e pauta a perpetuação de sistemas de verdade. Há uma universalização daquilo que corresponde à constituição civilizatória e que, consequentemente, engendra os projetos geracionais de apagamento das memórias coletivas na medida em que todas as perspectivas intelectuais fora dos critérios ocidentais são invalidadas como banais ou inferiores.

No processo de ocidentalização do mundo, pensar a psique a partir da intuição, da sensação e do sentimento de pertencimento e presença do ser humano no mundo não é atributo humano. Nesse contexto, as pessoas que não são submissas à razão como regime de verdade, têm sua condição de humanidade negada e são zoomorfizadas. Alguns seres humanos são exterminados por não terem alma platônica e estarem presos na caverna do sentir, como se não tivessem o desejo de habitar o mundo inteligível. A compreensão do mundo, a partir do eixo europeu, estabelece um padrão de poder ideológico. O homem racional é ocidental; o animismo e o primitivismo são orientalizados. A noção de humanidade é dada a alguns e negada a tantos outros.

Carl Gustav Jung (1946/2008), relacionando-se com a psique como fonte de conhecimento, discorre sobre a renovação da roupagem dos mitos com a finalidade de preservar a força simbólica e terapêutica. O mesmo autor ressalta recorrentemente que "[...] quando um ser vivo é separado de suas raízes, falta-lhe a ligação com as bases da existência e neste caso ele secará inevitavelmente. É aí, então, que a Anamnesis [itálico do autor] é de vital importância" (Jung, 1948/2008, p. 247, para. 279).

O desenraizamento e a ruptura com a tradição neurotizam as massas e as preparam para a histeria coletiva. Esta última exige terapia coletiva, que consiste na privação de liberdade e na implantação do terror. Por isso, onde impera o materialismo racionalista, os Estados transformam-se gradativamente menos em prisões do que em asilos de loucos (Jung, 1948/2008, p. 249, para. 282).

Esta resenha reflete sobre os convites recebidos diariamente para discutirmos o cada vez mais urgente processo de desconstrução da glorificação colonialista e de reconfiguração das estruturas de conhecimento e de estruturas de poder com fortes acentos patriarcais, em prol da constituição de percursos de responsabilização e consciencialização coletiva (Kilomba, 2019).

Refletindo especificamente sobre a sociedade brasileira, observamos que o Estado permanece como negócio de determinadas famílias, nas quais o sistema de poder patriarcal está assentado em práticas de poder: roubar, matar, destruir, assimilar, apropriar, dominar e (neo)colonizar. A estabilidade das instituições estatais é mantida por homens e famílias que se perpetuam no seu comando e controlam os aparelhos ideológicos e as forças de repressão em um país capitalista periférico.

[...] a realidade dos afro-brasileiros é aquela de suportar uma tão efetiva discriminação que, mesmo onde constituem a maioria da população, existem como minoria econômica, cultural e nos negócios políticos (Nascimento, 1976/2016, p. 98).

 

Referências

Jung, C. G. (2008). O Inconsciente. In Civilização em transição (OC, Vol. 10/3, pp. 30-32). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1946).

Jung, C. G. (2008). Considerações gerais sobre a psicologia do simbolismo alquímico-cristão. In Aion: estudo sobre o simbolismo do si mesmo (OC, Vol. 9/2, pp. 238-251). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1948).

Jung C. G. (2008). Considerações gerais sobre a psicologia do simbolismo alquímico-cristão. In Aion: estudo sobre o simbolismo do si mesmo (OC, Vol. 9/2, pp. 238-251). Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1948).

Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano (J. Oliveira, trad.). Rio de Janeiro: Cobogó.

Nascimento, A. (2016). O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1976).

Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In A colonialidade do saber, eurocentrismo e ciências sociais [Internet]. Buenos Aires: CLACSO. Recuperado de: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf

Ramose, M. (2011). Sobre a legitimidade e o estudo da filosofia africana. Ensaios Filosóficos, 4, 6-24. Recuperado em 03 de abril de 2021, de https://www.ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo4/RAMOSE_MB.pdf. Acesso em 3 de setembro de 2021.

 

 

 

Recebido: 13 dez 2022
Aprovado: 20 mar 2023
Aprovado para publicação: 02 maio 2023

 

 

Conflito de interesses: A autora declara não haver nenhum interesse profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a este manuscrito.
Minicurrículo: Aline M. S. De Coster - Mestranda em Psicologia Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Trainee pela Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica do Rio de Janeiro - SBrPA/RJ. Psicóloga. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: alinedecoster@hotmail.com