EDITORIAL
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A ilha

 

 

Grandes cabeças puras,
de longos pescoços, de olhar grave,
gigantescas mandíbulas erguidas
no olhar de sua solidão,
presenças,
presenças arrogantes,
preocupadas.

Oh graves dignidades solitárias,
quem se atreveu, se atreve
a perguntar, a interrogar
as estátuas interrogadoras?

São a interrogação disseminada
que ultrapassa a estreiteza exata,
a pequena cintura da ilha
e se dirige ao grande mar, ao fundo
do homem e de sua ausência. (Neruda, 1981, p. 41)

Finalmente nós nos encontramos do outro lado da ilha.

O planeta Terra é uma ilha, ilha imersa no espaço-tempo einsteiniano, o tecido do universo em que tudo existe. E apesar dessa imensidão inconquistável, somente há pouco - ainda agora, para bem dizer - nos demos conta de que o nosso mundo possui um limite, um limite físico. Nos demos conta de que nossos recursos naturais possuem limites mensuráveis e de que hoje é possível prever com alguma consistência quando irão acabar as reservas de combustível fóssil, quando não mais existirão tigres e leões vivendo livremente na natureza, até quando existirão pandas gigantes, orangotangos, abelhas...

Vivemos hoje o paradoxo de uma sociedade que tende a atribuir vida anímica a máquinas que nós mesmos construímos (num ritmo alucinante: cada vez mais parecidas conosco), uma sociedade que atribui dignidade aos seus pets e ao mesmo tempo consome o planeta, destruindo o lar de outros seres vivos, especialmente nossos primos primatas, cujo olhar é tão parecido com o nosso.

Repetimos, em enorme medida, o agir dos antigos habitantes da Ilha de Páscoa, o Umbigo do Mundo. Eles, afinal, como nós, construíram monumentos a si mesmos e às forças inconscientes e conscientes que os possuíam: os espíritos dos ancestrais mortos de um lado, o forte impulso humano pelo poder, do outro. O desejo de erguer símbolos que representem legados e, em última análise, imortalidade, comove o ser humano desde sempre. O impulso de construir o maior, o melhor, o mais importante monumento levou os rapanui a destruir o seu mundo, ao cortar quase todas as árvores da ilha, a fim de transformá-las em roletes para arrastar os impressionantes moai.

Muitos de nós ainda vivem a ilusão de que as fronteiras físicas dos países para sempre poderão ser ampliadas: a fantasia da consciência de que comportamentos excludentes (e, por isso mesmo, preconceituosos e - supremo paradoxo depois dos horrores das Grandes Guerras - racistas) são aceitáveis, como se, neste mundo insular no qual existimos hoje, uns pudessem sobreviver à destruição de todos os outros.

Nunca precisamos tanto de alteridade e empatia. Nos multiplicamos tanto e tivemos tanto sucesso material que hoje a ilha começa a se tornar pequena: passamos a vasculhar o espaço com ansiedade, em busca de planetas semelhantes ao nosso. Temos medo de que não sejamos capazes de encontrar soluções para a distribuição do chão-lar e dos recursos-vida de maneira minimamente universal e justa.

Ventos retrógrados sopram por esse nosso mundo-ilha, proferindo discursos sectários que ainda se apegam à ideia tola de que um mundo de muros e taxas e egos exagerados, ocupando o lugar do Grande Irmão, possa gerar proteção e segurança, enaltecendo nacionalismos e outros "ismos", enquanto a atmosfera escurece, a camada de ozônio se esvai, o mundo ao redor aquece, pessoas pacíficas se tornam refugiados e refugiados não encontram refúgio, e as outras pessoas pacíficas pacificamente continuam a silenciar diante da dor alheia.

Jung sempre e sempre reafirmou o perigo das atitudes exageradas, frutos da arrogância da consciência e - outro paradoxo da natureza (na verdade, outro entre muitos) - da extrema vulnerabilidade a conteúdos inconscientes, primitivos e mesmo animalescos, aos quais esta consciência arrogante se expõe como resultado imprevisto da sua própria arrogância. E também praticamente gritou sobre como estes conteúdos primitivos inconscientes podem ser altamente contaminantes quando alcançam livremente a coletividade humana. Esse é certamente o perigo que vivemos agora.

Mas devemos observar com atenção que o recorte do momento que ora vivemos vem como reação a outros ventos, fortes ventos que já vinham antes a soprar pelo mundo, ventos de tolerância, ventos de acolhimento às diferenças, ventos em cujo bojo viajam ideias como a da dignidade - o caráter único e sagrado da vida humana - de cada uma das pessoas que vivem nesta ilha espacial e também daquelas que já se foram, nossos mortos e seu legado, sua honra por terem participado da saga humana: eles, que nos honram por existirem em nós.

Self, a revista do Instituto Junguiano de São Paulo, assim como toda a comunidade junguiana do Brasil e do mundo são daqueles que buscam na essência do ser humano, sem excluir um único que seja, a resposta para esse aparente dilema moderno que vivemos: desde o final da Segunda Grande Guerra, com a expressão na consciência coletiva de que cada pessoa humana é única e digna em sua diversidade, exatamente quando passamos a ver com alguma esperança um futuro mais amoroso, justo e democrático, espalham-se esses ventos extremistas e violentos pelo mundo. Jung diria que a todo bem corresponde um mal equivalente e que seus movimentos se modulam mutuamente; pareço ouvi-lo.

Em "Civilização em transição" (boa parte escrito no período entre guerras, ou como sugerem modernos pensadores, no intervalo da Grande Guerra), Jung dá uma resposta à questão sobre o que fazer:

São poucos os modernos, ou melhor, os homens que vivem no presente imediato, pois sua existência exige a mais alta consciência, uma consciência extremamente intensiva e extensiva, com um mínimo de inconsciência, pois só aquele que tem consciência plena de sua existência como ser humano está de todo presente. Deve-se entender bem que não é o simples fato de viver no presente que faz alguém ser moderno, pois neste caso tudo o que vive hoje seria moderno. Só é moderno aquele que tem profunda consciência do presente. (Jung, 2000, p. 75, OC X/3: 149)

 

Ricardo Pires de Souza

Editor científico

 

Referências

Jung, C. G. (2000). Civilização em transição. In C. G. Jung, Obras Completas (Vol. X/3). Petrópolis: Ed. Vozes.

Neruda P. (1981). A Rosa Separada. Porto Alegre: L&PM Editores.