RESENHA
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2023.vol8.192

 

O insaciável espírito da época: ensaios de psicologia analítica e política

de: Humbertho Oliveira, Roque Tadeu Gui e Rubens Bragarnich. Editora Vozes, 2021.

 

 

Aline Galantinni SILVA

Pontifícia Universidade Católica - PUC. Belo Horizonte/MG, Brasil

 

 

Introdução

O presente escrito tem como objetivo apresentar uma resenha sobre a obra intitulada "O insaciável espírito da época: ensaios de psicologia analítica e política" (Oliveira, Tadeu, & Bragarnich, 2021), uma coletânea de 12 ensaios cuidadosamente reunidos, que buscam contribuir para o entendimento dos complexos culturais atuantes no Brasil e de como eles se inserem no contexto de intensa polarização política vivenciada nos últimos anos. Simbolicamente, a obra pode ser considerada como um mapa da dinâmica dos complexos culturais na atualidade brasileira, dado seu resultado bem sucedido de ampliar as discussões sobre as questões sociopolíticas do país pela ótica da psicologia analítica.

Por mais que seja impossível contemplar em uma única obra toda a complexidade do inconsciente cultural brasileiro, o livro busca discutir questões de extrema relevância no contexto sociopolítico nacional e os atravessamentos destas na experiência interior de cada indivíduo, na prática clínica da psicologia junguiana.

Como bem ressaltado por Amnéris Maroni no prefácio da obra, os escritos, além da boa fundamentação teórica, possuem um diferencial que precisa ser levado em consideração: a escuta singular, uma escuta emocional, uma escuta do sofrimento de seus pacientes, que qualificou, de fato, as proposições de cada um dos analistas presentes na obra (Oliveira et al., 2021).

Nesse sentido, pode-se dizer que a psicologia estabeleceu um diálogo profícuo com a sociologia, a ciência política, a antropologia e a educação sem, contudo, se diluir ou se perder nessas importantes áreas de conhecimento.

O primeiro ensaio intitulado "Carta aos jovens psicoterapeutas sobre a cidade", de autoria de Cristiano Costa, defende que a cidade deve ser compreendida pela psicoterapia como uma "presença visível e autônoma, multifacetada e viva" (Oliveira et al., 2021, p. 24). O autor propõe um aprofundamento dos estudos acerca da psicologia da cidade e ressalta a importância destes para o aprimoramento da atuação clínica. Nesse sentido, o ensaio discorre de forma detalhada sobre a obra "Cidade & Alma", de James Hillman (1993) e suas especiais contribuições.

O segundo ensaio, de autoria de Humbertho Oliveira, cujo título é "Nise da Silveira e Leonardo Boff: o encontro do Brasil com Jung", resgata sabiamente o legado da psiquiatra Nise da Silveira para a reforma psiquiátrica no Brasil, bem como a obra do teólogo Leonardo Boff sobre os direitos humanos. O ensaio tem como pano de fundo o projeto fascista de nação executado no Brasil entre 2015 e 2018, que resultou na posse de um coordenador de saúde mental no Ministério da Saúde radicalmente contra os princípios da reforma psiquiátrica, que praticou ainda outras arbitrariedades e desmontes contra os direitos dos mais fracos, oprimidos e marginalizados. No texto, Nise da Silveira e Leonardo Boff são apresentados como expoentes da causa antimanicomial e contra a pobreza dos povos e da terra, que atuaram e atuam de forma efetivamente junguiana em prol da liberdade de ser e de se expressar, da compaixão, da justiça social e da dignidade humana.

O terceiro ensaio, denominado "Individuação e política: sobre como nos tornamos seres políticos", discute as relações que podem ser estabelecidas entre o desenvolvimento psicológico e o desenvolvimento político da pessoa. Para isso, o autor Roque Tadeu Gui costura sua análise a partir do conceito junguiano de individuação e do conceito de conscientização proposto por Paulo Freire. De acordo com Jung (1875-1961), a individuação é um processo pessoal de expansão da consciência de si mesmo, que se dá em três estágios: o primeiro "consiste na emergência da consciência do Eu a partir da matriz do inconsciente" (p. 67); o segundo, na consolidação da "identidade egóica fundamentada na construção de uma persona e, consequentemente, da sombra" (p. 69); e o terceiro, na mudança qualitativa na consciência, culminando em uma maior percepção da conexão Eu-Si-mesmo (p. 70).

Por sua vez, o educador Paulo Freire (1921-1997) cunha o conceito de conscientização política como a transição da consciência intransitiva (um estado de consciência ainda pouco compromissado com a realidade) para a consciência crítica. Segundo Freire (1979/2002), o processo de conscientização se dá em três estágios: o primeiro seria a consciência mágica, na qual a realidade é vista como fruto de forças superiores, como Deus e o destino, cabendo aos indivíduos apenas a resignação. No segundo estágio, denominado de "consciência ingênua", as pessoas são capazes de nomear o problema, porém, não conseguem se aprofundar no reconhecimento das causas e no funcionamento do sistema gerador. Por fim, o terceiro estágio consiste no desenvolvimento da consciência crítica, capaz de compreender de forma integrada o sistema sociopolítico e como a opressão e a injustiça são retroalimentadas pela coletividade e, por consequência, demandam intervenções de caráter coletivo. A partir desses entendimentos, o ensaio estabelece um diálogo entre os dois processos, demonstrando como a individuação e a socialização política, apesar de não se confundirem, estabelecem entre si complexas relações.

No quarto ensaio, cujo título é "Educação e política no Brasil", a autora Rosa Maria Brizola propõe considerar a educação como caminho para a individuação da nação brasileira. A autora reflete sobre a necessidade de transformação e de construção de uma educação que intencione o desenvolvimento integral do indivíduo, se afaste do modelo tradicional e individualista de educar e integre a multiculturalidade característica da alma brasileira.

No quinto ensaio, "Por dentro do complexo coletivo político-ideológico brasileiro: hiperpolarização, rupturas e fantasias fundacionais", os autores Rubens Bragarnich e Bruno Correia da Mota fazem um exame primoroso dos complexos político-ideológicos e fantasias fundacionais que constituem a história imaginada do Brasil, momentos sombrios e traumáticos que não foram assimilados e integrados adequadamente e que eclodem na consciência coletiva de maneira caótica, materializando-se, inclusive, na forma de autoritarismo. Segundo os autores, a história oficial do Brasil tem raízes no período imperial e foi construída a partir de uma narrativa que sustentou, na psique coletiva nacional, uma persona do brasileiro de povo acolhedor, unido e tolerante que habita um território paradisíaco. Por outro lado, essa narrativa encobriu aspectos arquetípicos da sombra coletiva manifestos em preconceito, discriminação, corrupção e desigualdade social. Essa trajetória, segundo os autores, levou à "saturação de uma camada de ódio, desprezo, aversão e hiperpolarização" (p. 114), cujos efeitos podem ser percebidos nos tempos atuais, especialmente na dinâmica política das eleições presidenciais de 2018. Ao longo do ensaio, os autores resgatam a Era Vargas, o processo de redemocratização do Brasil, o impeachment da presidente Dilma Rousseff e o recente governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. Por meio do diálogo com diferentes historiadores e do pensamento social brasileiro (Schwarcz, 2019; Holanda, 1936/2016; Freyre, 1933/2003; Munanga, 2009; Souza, 2017; Ribeiro, 1995/2006; Skidmore, 2012), Bragarnich e Mota relacionam as várias tentativas de construção de uma identidade nacional que nega as sombras coletivas e dilui as diversidades étnico-racionais, de gênero, de orientação sexual, de classe e religião. A partir desse resgate, os autores analisam como complexos culturais manifestam-se na atuação dos governos no Brasil com uma narrativa anticorrupção, que prega a existência de um inimigo externo ou interno que deseja impedir o progresso do país.

O sexto ensaio dessa obra, "Arkhés africanas e a descolonização da psicologia: a clínica como quilombo imaginal", é de autoria de Carmen Lívia Girade Parise e de Guilherme Scandiucci, que discorrem sobre como a alma brasileira foi imaginada a partir do processo de colonização e de escravidão, que resultou na negação dos aspectos relacionados aos povos originários e às arkhés africanas. O ensaio defende que a psicologia deve ser reimaginada e a clínica, que ainda é marcadamente euroamericana, deve ser descolonizada a partir da prática de uma psicologia afro.

Intitulado "Tekoa como espaço espiritual e político guarani: reciprocidade entre espíritos, humanos e animais", o sétimo ensaio é de autoria de Ana Luisa Teixeira de Menezes. No estudo, Menezes discorre sobre a amplitude e as potencialidades do conceito de Tekoa, que é o termo utilizado pela etnia mbya guarani para se referir ao território ancestral sagrado, um conceito que ultrapassa o espaço físico, contemplando o simbólico e integrando modos de ser, de viver e fazer política e a espiritualidade.

No oitavo ensaio, "A teologia evangélica brasileira acerca do mal e o voto eleitoral", o autor Silvio Lopes Peres resgata as raízes históricas e filosóficas que embasam a teologia evangélica e, em especial, o neopentecostalismo, no que tange à concepção e às narrativas a respeito do "mal" e, por consequência, do "demoníaco", "diabólico" e "satânico" (Oliveira et al. 2021, p. 193). O autor discorre sobre como vertentes político-partidárias no Brasil recente encontraram campo de atuação nas religiões e sobre os desdobramentos dessa situação para o inconsciente coletivo e pessoal.

O nono ensaio é de autoria de Vera Lúcia Colson Valente e tem como título "Pólis, psique e política: caminhos do poder e o adoecimento da alma". A autora desdobra-se sobre o poder hegemônico, introjetado e naturalizado, do pensamento liberal na sociedade contemporânea e seus efeitos sobre o modo de vida das pessoas e a prática clínica em psicologia.

O décimo ensaio, "O fenômeno psíquico coletivo no Brasil: a escuta clínica do analista junguiano", de autoria de Denis Canal Mendes, foi construído através da própria experiência do autor como analista junguiano no processo de escuta clínica, no contexto das manifestações sociais e políticas no Brasil, iniciadas em 20121. Mendes discute os impactos emocionais sofridos pelos pacientes a partir do cenário sociopolítico caótico, que constelou a sombra coletiva no inconsciente de grande parte dos brasileiros, tomados pelos fenômenos psíquicos de massa que aconteceram no país.

Em "Intoxicação prometeica em tempos de aquecimento global: o aceleracionismo como fantasia antropocêntrica e sua compensação", o 11º ensaio, o autor Maurício Silveira dos Santos, partindo da atuação do personagem mitológico Prometeu, discorre sobre o homem contemporâneo imerso na agenda aceleracionista advinda do avanço tecnológico. Para refletir sobre essa dinâmica, o autor costura sua discussão dialogando com os pressupostos e concepções da relação da psique com e no mundo das obras de Jung, Hillman (1993, 2010a, 2010b, 2015), Danowski e Viveiros de Castro (2014) e John Gray (2005).

A coletânea encerra-se com o ensaio "Bacurau, bacurando-me, bacurando-se", de Amnéris Maroni, em que a autora discorre sobre toda a fecundidade e potencialidades do filme "Bacurau" (Mendonça Filho & Dornelles, 2019), como alegoria utópica e distópica para se pensar o Brasil, a individuação do social e a alquimia generalizada (conceitos desenvolvidos pela autora ao longo do texto).

Apesar de cada ensaio tratar de uma temática distinta, a obra pode ser entendida como um grande corpo composto por elementos que dialogam e se cruzam nas esquinas das "patologias da alma brasileira, cada vez mais evidentes e fortes" (Oliveira et al. 2021, p. 250).

Os ensaios demonstram que o cenário de profunda crise social e hiperpolarização política gera impactos emocionais nos pacientes e tem atravessamentos na prática clínica do analista que não devem ser negligenciados. O livro é um convite para romper o tabu de que no consultório não se pode falar de política, pois, conforme bem proposto nos ensaios, "tanto a sombra individual quanto a sombra coletiva devem ser assimiladas, enfraquecidas e elaboradas, pois só assim poderá haver transformação profunda do indivíduo e, em um grau mais amplo, de uma sociedade" (Oliveira et al., 2021, p. 262).

A obra carrega, desde o seu título e em cada um de seus ensaios, um insaciável anseio de mergulhar nas profundezas da alma brasileira, com o intuito de contribuir para a elaboração de aspectos sombrios da nossa história, que não foram trazidos à consciência adequadamente. Cabe ressaltar que o livro também está disponível na língua inglesa, o que potencializa ainda mais o alcance de suas colaborações.

Por fim, as questões tratadas na obra jamais serão esgotadas, pelo contrário: a partir das contribuições trazidas pelos autores, diversas sementes foram lançadas no terreno fértil da comunidade junguiana, convocando-nos a desbravar e a reimaginar corajosamente a alma brasileira.

 

Referências

Danowski, D. & Viveiros de Castro, E. (2014). Há um mundo porvir?: ensaios sobe os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie.

Gray, J. (2005). Cachorros de palha: reflexões sobre humanos e outros animais. (M. L. Oliveira, trad.). Rio de Janeiro: Record.

Freire, P. (2002). Educação e mudança (26a ed., M. Gadotti, L. L. Martin, trads.). São Paulo: Paz e Terra. (Educação e Comunicação, Vol. 1). (Trabalho original publicado em 1979).

Freyre, G. (2003). Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global. (Trabalho original publicado em 1933).

Holanda, S. B. (2016). Raízes do Brasil (Edição crítica; L. M. Schwartz & P. M. Monteiro, orgs.). São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1936).

Hillman, J. (1993). Cidade e alma. São Paulo: Studio Nobel. Trabalho original publicado em 1993).

Hillman, J. (2015). Mythic figures [e-book]. New York: Spring. [e-book, v 3.0.8]

Hillman, J. (2010a). O pensamento do coração e a alma do mundo (G. Barcellos, trad.). Campinas: Verus

Hillman, J. (2010b). Re-vendo a psicologia (G. Barcellos, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes

Mendonça Filho, K., & Dornelles, J. (Diretores). (2019). Bacurau. São Paulo: Vitrine Filmes.

Munanga, K. (2009). Negritude: usos e sentidos. Belo Horizonte: Autêntica.

Oliveira, H., Gui, R. T., & Bragarnich, R. (Orgs.). (2021). O insaciável espírito da época: ensaios de psicologia analítica e política. Petrópolis, RJ. Vozes.

Ribeiro, D. (2006). O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1995).

Schwarcz, L. M. (2019). Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras.

Souza, J. (2017). A elite do atraso: da escravidão à lava jato. Rio de Janeiro: Leya.

Skidmore, T. E. (2012). Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras.

Viveiros de Castro, E. (2015). Metafísicas canibais. São Paulo: Cosac Naify.

 

 

Recebido: 14 jul 2023
1a revisão: 7 ago 2023
Aprovado: 7 set 2023
Aprovado para publicação: 16 out 2023

 

 

Conflito de interesses: A autora declara não haver nenhum interesse profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a este manuscrito.
Minicurrículos: Aline Galantinni Silva - Mestrado em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; especialização em Políticas Públicas e Gestão Governamental pela Universidade Federal Fluminense - UFF; graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-Minas; graduanda em Psicologia pela PUC-Minas. São Paulo, SP. E-mail: liligalantinni@gmail.com
1 Consagrou-se na literatura 2013 como o ano do início das manifestações.