ARTIGO DE REFLEXÃO
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2024.vol09.197

 

A inteligência artificial e o desenvolvimento neuropsicológico de crianças e adolescentes

 

The Artificial Intelligence and the neuropsychological development of children and adolescents

 

La inteligencia artificial y el desarrollo neuropsicológico de niños y adolescentes

 

 

Ceres Alves de ARAÚJO

Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica - SBPA, Núcleo de Estudos sobre o Desenvolvimento Humano. São Paulo, SP, Brasil

 

 


RESUMO

Tem-se afirmado que o uso da inteligência artificial (IA) pode proporcionar um ambiente mais estimulante para crianças e adolescentes, considerando principalmente a facilidade de acesso a um grande volume de informações, o aprendizado personalizado e a possibilidade de adaptação de conteúdos a necessidades individuais. Porém, é importante discutir as influências do uso de tecnologias de IA no desenvolvimento das funções neuronais desde uma idade muito precoce. Os padrões do desenvolvimento psicológico estão sofrendo mudanças estruturais que, sem dúvida, repercutirão na psique de mulheres e homens do futuro. A IA generativa, como o ChatGPT, surge em uma época em que há muito tempo se questiona o empobrecimento da vida psíquica, pelo excesso do uso de telas. Sabe-se que o cérebro é dependente do uso, assim, a impregnação das telas na infância, a amplificação de seu uso na pré-adolescência e a submersão nelas na adolescência caracterizam o vício digital, que poderá perturbar o desenvolvimento das redes neuronais; minar a inteligência; comprometer o desenvolvimento da capacidade para a reflexão e para o pensamento simbólico; prejudicar as condutas interativas e sociais; e danificar a saúde, favorecendo distúrbios do sono e a obesidade. Para Jung, a tecnologia em si é neutra: a existência ou não de dano à psique do ser humano dependeria, portanto, de seu uso. O cérebro acoplado à IA amplificará o desenvolvimento humano. Será que, da mesma forma, a mudança na estruturação das redes neurais levará a mudanças na cognição, no afeto, na emoção e na ética humana?

Descritores: inteligência artificial; redes neurais; cognição; emoções; afeição; ética.


ABSTRACT

It has been claimed that the use of artificial intelligence (AI) can provide a more stimulating environment for children and adolescents, especially considering the ease of access to a large volume of information, personalized learning and the possibility of adapting content to individual needs. However, it is important to discuss the influences of the use of AI technologies on the development of neural functions from a very early age. Patterns of psychological development are undergoing structural changes that will undoubtedly have repercussions on the psyche of women and men in the future. Generative AI, such as ChatGPT, comes at a time when the impoverishment of psychic life through excessive use of screens has long been questioned. It is known that the brain is dependent on use. Thus, the impregnation of screens in childhood, the amplification of their use in pre-adolescence and the submersion in them in adolescence characterize digital addiction, which may disrupt the development of neural networks; undermine intelligence; compromise the development of the capacity for reflection and symbolic thinking; impair interactive and social conduct; and damage health, promoting sleep disorders and obesity. According to Jung, technology itself is neutral: whether or not there is damage to the human psyche would therefore depend on its use. The brain coupled with AI will amplify human development. Will, in the same way, the change in the structuring of neural networks lead to changes in cognition, affect, emotion and human ethics?

Descriptors: artificial intelligence; neural networks; cognition; emotions; affection; ethics.


RESUMEN

Se ha afirmado que usar la inteligencia artificial (IA) puede proporcionar un ambiente más estimulante para niños y adolescentes, considerando principalmente la facilidad de acceso a un gran volumen de informaciones, al aprendizaje personalizado y a la posibilidad de adaptación de contenidos a necesidades individuales. Sin embargo, es importante discutir las influencias del uso de tecnologías de IA en el desarrollo de las funciones neuronales desde una edad muy precoz. Los patrones de desarrollo psicológico están sobrellevando cambios estructurales que, sin duda, repercutirán en la psique de mujeres y hombres del futuro. La IA generativa, como el ChatGPT, surge en una época en la cual se cuestiona, desde hace mucho tiempo, el empobrecimiento de la vida psíquica debido al exceso del uso de pantallas. Se sabe que el cerebro se torna dependiente del uso, y así, la impregnación de las pantallas en la infancia, el aumento de su uso en la preadolescencia y la sumersión en ellas en la adolescencia definen el vicio digital que podrá alterar el desarrollo de las redes neuronales; minar la inteligencia; comprometer el desarrollo de la capacidad para la reflexión y el pensamiento simbólico; perjudicar las conductas interactivas y sociales; y ser perjudicial para la salud, favoreciendo trastornos del sueño y obesidad. Para Jung, la tecnología en si es neutra, por lo tanto, la existencia o no del daño a la psique del ser humano dependería de su uso. El cerebro, acoplado a la IA, amplificará el desarrollo humano. ¿Pero, de la misma forma, el cambio en la estructuración de las redes neurales podría llevar a cambios en la cognición, el afecto, la emoción y la ética humana?

Descriptores: inteligencia artificial; redes neurales; cognición; emociones; afección; ética.


 

 

[...] como lidar com o excesso de ruído e de sombras na "caverna" digital contemporânea, com a abundância de palavras, imagens e ideias que, por vezes, nos agridem, mas que podemos compreender como uma imensa riqueza a nosso dispor ou como um campo minado, um mundo sujo e hostil, do qual precisamos nos proteger e com o qual nada temos a aprender. (Schuler, 2023, [sem p.], destaque do autor)

 

Introdução

A inteligência artificial (IA) é uma área da ciência da computação que busca criar máquinas capazes de realizar tarefas que exigem inteligência humana. Esses sistemas são projetados para aprender, raciocinar, reconhecer padrões e tomar decisões com base em dados.

O desenvolvimento neuropsicológico envolve a maturação do cérebro e suas influências no comportamento, no aprendizado, nas habilidades cognitivas, nas trocas afetivas e na sociabilidade. As relações que são estabelecidas em função das primeiras interações mãe-bebê começam a construir as redes neurais. A mente e sua função simbólica emergem no processo do desenvolvimento e da experiência dos relacionamentos interpessoais iniciais.

Gradualmente, os modelos mentais sobre o mundo ao redor são construídos, organizando-se a experiência do dia a dia em padrões que, então, dirigem as expectativas da vida em todos os aspectos. O desenvolvimento neuropsicológico do ser humano é moldado pelas comunicações verbais e não verbais com outro ser humano; é influenciado pelos ambientes físico e cultural; e é determinado arquetipicamente.

Compreender esse processo é essencial para discutir como a IA pode impactar positiva e negativamente as crianças e adolescentes.

 

Questões iniciais: Jung e a tecnologia

As referências de Jung à tecnologia são poucas e refletem o espírito da sua época. Segundo ele (1938/1983), a tecnologia deu ao homem a ilusão de que ele é superior à natureza. Jung considerava que a tecnologia em si é neutra. Se causa danos ou não, depende da nossa atitude em relação a ela. O que se faz com a tecnologia advém da disposição ética do indivíduo para aceitar ou negar os poderes de manipulação, de domínio e de extermínio. A neutralidade é apenas da máquina.

Como visionário, Jung estava intrigado com a associação entre o Self e os aparatos tecnológicos da sua época. Ele acreditava que a máquina poderia ser considerada um microcosmo, o que Paracelsus (Hohenhcirn, 1945) chamou de "a estrela no homem", indicando a luz da natureza no ser humano. Como a máquina foi pensada pela mente humana e criada pelo indivíduo, ela estava de algum modo dentro dele antes mesmo de ter sido criada fora.

Brian (2013), analista junguiana, concorda que as ideias sobre tecnologia de Jung não são explícitas e nem desenvolvidas, mas são antecipadoras de futuro, dada sua mente intuitiva. Se alquimia foi um arcano nos tempos idos, a tecnologia de hoje é um arcano perfeito para a contemporaneidade. A "estrela no homem" da alquimia pode iluminar as reflexões sobre a tecnologia de hoje.

Na perspectiva da psicologia arquetípica, pode-se refletir a respeito da relação entre imagens e o espaço cibernético. Cumpre lembrar que a realidade virtual é puramente imagética e que as imagens são os fundamentos da psique.

Para Brian (1997), a internet é um extraordinário locus das profundezas do inconsciente coletivo nos nossos tempos, pois nela, novos mitos são formados, arquétipos ainda ignorados se apresentam e novas aventuras para a psique se propõem. Segundo Brian, o próprio Jung reconhecia que, em épocas diferentes, novos arquétipos podem ser constelados e com eles, outras interpretações, que serão apropriadas para essas épocas. Os novos arquétipos não podem ser ignorados, pois corre-se o risco de se perder significados. Assim, na internet, os arquétipos parecem emergir em imagens e metáforas.

Stefik (1997), membro da American Association for Artificial Intelligence e interessado na teoria junguiana, explicita quatro metáforas, que são também funções da internet, cada uma apontando para um arquétipo como fonte: a biblioteca digital apontando para o arquétipo do "guardador do conhecimento", associado a Prometeu; o correio eletrônico referindo-se ao arquétipo do "comunicador", associado a Hermes; o mercado eletrônico ligado ao arquétipo do "comerciante", associado a trickster; e os mundos digitais apontando para o arquétipo do "aventureiro", relacionado ao herói. Os quatro arquétipos podem ser compreendidos como originários de instintos básicos que dirigiram os seres humanos desde os princípios dos tempos, como imagens dos instintos e como metas espirituais na direção das quais se esforça a natureza humana. Para Stefik (1997), as metáforas da internet, com sua fonte arquetípica, podem ser relacionadas aos mitos antigos. Porém, se existe uma imagem mítica que pode ser relacionada à IA, ela é Hermes, o mediador, o comunicador, o mensageiro, o trapaceiro, o patrono dos mercadores... Os atributos de Hermes são inesgotáveis, assim como é a IA dos dias atuais.

A velocidade do desenvolvimento tecnológico que é presenciada atualmente levanta a questão: que tipo de mundo está se criando? Estão sendo construídas circunstâncias que aumentam as possibilidades de crescimento para a humanidade em termos de liberdade, de sociabilidade, de inteligência, de criatividade, de bem-estar, de autorregulação ou está se construindo o contrário?

 

O transumanismo

Há 100 anos, começou-se a falar sobre o transumanismo, um tipo de filosofia que busca guiar o desenvolvimento a uma condição pós-humana, tendo como objetivos o aumento da inteligência e o prolongamento da vida do ser humano por meio de tecnologias que eliminam a doença e o envelhecimento, visando à imortalidade. O sofrimento não deve, assim, fazer parte da vida (Brito, 2019).

A origem dessas ideias pode ser encontrada tanto na busca pela imortalidade na epopeia de Gilgamesh, quanto nas missões míticas que buscam a fonte da juventude ou o elixir da vida para evitar o envelhecimento e a morte.

O transumanismo (>H ou H+) é uma filosofia que analisa e incentiva o uso da ciência, da tecnologia (especialmente da biotecnologia), da neurotecnologia e da nanotecnologia com o objetivo de ultrapassar as limitações humanas, intelectuais, físicas ou psicológicas e, assim, melhorar a espécie humana e a própria condição de homo sapiens.

Revoluções simultâneas estão ocorrendo: a nanotecnologia repara e constrói moléculas; a biologia repara e constrói o corpo humano; a informática traz o aumento exponencial do cálculo informático e faz surgir a IA; e a ciência cognitiva explica o processo do armazenamento no cérebro e na mente de nossas memórias e emoções (F. B. Assumpção Jr., comunicação pessoal, 11 de fevereiro de 2022). O humanismo clássico acredita na educação e na cultura como transformadores da evolução do ser humano, mas o transumanismo considera que isso não é suficiente, pois acredita que a ciência e a tecnologia podem ajudar a criar uma categoria de seres humanos evoluídos: os pós-humanos.

 

O ChatGPT

A OpenAI publicou uma ferramenta chamada chat generative pre-trained transformer (ChatGPT) no final de novembro de 2022, um protótipo de um chat com IA, especializado em diálogo. Desde então, o uso do ChatGPT tem crescido exponencialmente (Ferreira, 2023; Sérvio, 2023).

Trata-se de uma ferramenta que permite que os usuários discutam com a IA, inserindo perguntas e obtendo respostas em forma de textos pertinentes. O ChatGPT escreve ensaios científicos e literários, poesias, músicas, contos etc.; e entende as sutilezas da linguagem natural produzida pelo ser humano em vários idiomas. Produz artigos exclusivos sobre qualquer assunto, empregando a capacidade de pesquisa rápida de temas e com habilidades de gramática e escrita; cria ensaios reflexivos; e realiza sínteses e metanálises de temas.

Muitas pessoas - especialmente as mais jovens -- já estão fazendo uso desse programa, e acredita-se que ferramentas desse tipo modificarão profundamente os métodos de aprendizagem.

Em março de 2023, o laboratório de pesquisa de IA da OpenAI lançou a mais nova versão de seu software de linguagem, o GPT-4, uma ferramenta avançada para analisar imagens e imitar a voz humana, ultrapassando os limites técnicos e éticos de uma onda de IA em rápida proliferação. É notável sua capacidade de raciocinar e aprender (Haleem, Javaid, & Singh, 2022).

Entretanto, vários sinais de alarme têm surgido entre os profissionais ligados à educação. Muitos deles consideram que o ChatGPT será a morte da educação. Existem escolas que consideram o uso da ferramenta uma trapaça. Busca-se banir sua utilização, em meio a preocupações com fraudes. Alarmadas com chatbots de IA, algumas universidades já começam a reformular sua forma de ensinar.

Por outro lado, existem organizações sem fins lucrativos que propõem como missão fornecer gratuitamente educação a qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo, acreditando que estamos no limiar da utilização da IA para a maior transformação que o ensino já viu e propondo o Chat GPT-4, por possuir um modelo linguístico, como um supertutor de IA para estudantes e professores (Khan, 2021).

Considerando o usa da IA para tutoria individual, diferente de um tutor humano, ela não somente detectaria o erro do estudante, como também lhe pediria explicações sobre o raciocínio feito, sendo capaz de adivinhar o porquê da resposta errada na cabeça do estudante. A IA consegue debater com o estudante e ajudá-lo a refinar argumentos. Escreve com a pessoa e não para a pessoa. Ao treinar interpretação de textos, dá feedbacks. Nesse sentido, a tutoria não seria apenas para o aluno, mas também para o professor. Como capacitador para o professor, esse tutor individual poderia elevar o ensino para um melhor nível com planejamentos guiados pela IA (Khan, 2021).

 

A consciência humana

Nesse mundo tecnológico, tão cheio de telas, começou a existir uma maneira diferente de formatação das redes neuronais desde idades muito precoces. Os padrões do desenvolvimento psicológico estão passando por modificações estruturais que, sem dúvida, terão repercussão no psiquismo de mulheres e homens do futuro.

Sabe-se que a consciência é uma possibilidade compartilhada pelos seres humanos, chimpanzés, macacos e outros animais. O que é característico do ser humano, contudo, é a capacidade de manipular a consciência intencionalmente; de refletir sobre seus pensamentos e sentimentos e de refletir sobre o que se reflete; de contemplar realidades alternativas; e de transformar sua própria identidade (Foley, 1998). O processamento complexo de informações caracteriza o homo sapiens sapiens.

Um cérebro complexo é um legado da evolução humana e é vulnerável a uma variedade de fatores, que podem modificar o padrão do desenvolvimento pela alteração da integração de importantes redes neuronais.

Assim, diferentes trajetos de desenvolvimento podem ser traçados em função da interação entre os mecanismos genéticos de orientação específica e a circunstancialidade envolvente de cada ser humano desde o útero.

O cérebro possui a capacidade genética de se conectar à experiência e de adquirir a competência de se modificar sob a influência das reações do meio e das relações cognitivas e afetivas internas. O cérebro se constrói graças a uma mistura de genética, epigenética e acaso. A estrutura e o funcionamento do cérebro são dependentes do uso (Shore, 1994).

Diante desse contexto, pergunta-se: o cérebro acoplado à IA amplificará o desenvolvimento humano? Mas, em quais sentidos? Em quais direções? Como a mudança na estruturação das redes neurais levará a mudanças na cognição, no afeto, na emoção e na ética? Que transformações ocorrerão nas mentes de nossas crianças e adolescentes, que serão adultos no futuro?

 

IA e o impacto sobre as funções neuropsicológicas e a capacidade de adaptação

Tem-se apregoado que a utilização da IA pode proporcionar um ambiente mais estimulante para crianças e adolescentes, contribuindo para a melhora da capacidade de armazenar e recuperar informações e para o desenvolvimento da atenção, da linguagem e das habilidades de adaptação. A IA, em sua função de facilitadora, pode oferecer recursos educacionais personalizados, estimulando o desenvolvimento das habilidades cognitivas de forma individualizada. A interação com a IA pode proporcionar novos modos de aprendizagem e de desenvolvimento, promovendo uma nova geração de habilidades necessárias para o futuro.

Nesse sentido, comumente são listados como benefícios do uso da IA, segundo Nelson (2023):

(1) O acesso à informação, uma vez que é facilitado o acesso a um vasto volume de informações e conhecimentos relevantes.

(2) A aprendizagem personalizada, pela possibilidade de adaptação do conteúdo educacional às necessidades individuais, melhorando a eficiência do aprendizado.

(3) O estímulo para o pensamento crítico, pois a interação com sistemas de IA desafia os jovens a analisarem informações de forma crítica, desenvolvendo habilidades de argumentação e para o processo de tomada de decisões.

Já os riscos seriam, ainda segundo Nelson (2023):

(1) A dependência tecnológica e das telas, considerando que o uso excessivo de ferramentas de IA pode criar uma dependência, levando a problemas de socialização e a um aprendizado limitado, interferindo no desenvolvimento de habilidades como resolução de problemas e criatividade.

(2) A presença de vieses e discriminações, uma vez que os algoritmos de IA podem perpetuar vieses e discriminações existentes na sociedade, afetando negativamente as crianças e os adolescentes.

(3) Os riscos à privacidade, pois a coleta e a análise de dados pessoais pelas tecnologias de IA podem representar riscos à segurança dos jovens.

Tem-se, assim, que o favorecimento de aprendizados automáticos não é sempre tão bom e que o desenvolvimento de sistemas de IA, cada vez mais complexos e autônomos, levanta questões éticas e de confiabilidade. Outra preocupação é a equidade de acesso, pois a garantia de acesso igualitário às tecnologias de IA é fundamental para evitar a exclusão digital e a acentuação das desigualdades sociais.

 

O excesso das telas no mundo contemporâneo e o surgimento do ChatGPT

Michel Desmurget (2021), pesquisador em neurociência cognitiva, chama a atenção para o mito dos nativos digitais, mostrando que três traços caracterizam essa geração: o zapping, a impaciência e o coletivo. Eles esperam uma retroatividade imediata, gostam de trabalhar em equipe e possuem uma cultura digital transversal intuitiva. Tendem a fugir ao raciocínio dedutivo e demonstrativo, preferindo o tateamento favorecido pelos links de hipertexto. As tecnologias digitais estão emaranhadas a suas vidas, sendo impossível separá-las. A tecnologia é, praticamente, sua língua materna.

Segundo esse autor, apesar das novas acessibilidades e dispositivos digitais, essa geração tende a dedicar pouco tempo para criar conteúdos próprios. O uso das telas de mídia continua sendo dominado por jovens que assistem TV e vídeos, jogam videogames e usam as redes sociais. Seu desenvolvimento linguístico é pobre e eles não partilham a cultura dos seus pais. Têm dificuldade para pensar, ler, escrever e fazer cálculos.

É verdade que se os potenciais fundamentais da infância não forem suficientemente atualizados, pode ser tarde demais para aprender posteriormente a pensar, refletir, manter concentração, fazer esforços, dominar a língua, além de hierarquizar os fluxos de informação recebidos e interagir com pessoas, ações consideradas bases rudimentares do desenvolvimento humano (Araújo, 2020).

Uma imersão precoce da criança no mundo digital poderá desviar os aprendizados essenciais que, por conta do fechamento progressivo das janelas de desenvolvimento, tornam-se mais difíceis de alcançar. Pela primeira vez na história, os filhos têm QI inferior ao de seus pais (Desmurget, 2021).

O que não foi adquirido durante as idades precoces do desenvolvimento em termos de linguagem, coordenação motora, pré-requisitos matemáticos, hábitos sociais e regulação emocional é muito mais difícil de ser adquirido depois.

Todas essas aquisições dependem do vínculo afetivo com os cuidadores primários. Cozolino (2016), psicólogo e neurocientista, foi quem postulou o conceito do cérebro como um órgão social, ressaltando o poder dos relacionamentos interpessoais presenciais para estimular o aprendizado e regular ansiedade, muitas vezes, advinda da própria situação do aprender.

Sabe-se que a impregnação das telas na infância, a amplificação de seu uso na pré-adolescência e a submersão nelas na adolescência caracterizam o vício digital, que poderá perturbar o desenvolvimento das redes neuronais, minar a inteligência, prejudicar as condutas interativas e sociais e danificar a saúde, favorecendo distúrbios de sono e obesidade.

Marciano, Camerini e Morese (2021) realizaram a primeira revisão de escopo de evidências neurocientíficas sobre os efeitos do uso das telas no cérebro de adolescentes. Os pesquisadores mostraram que a frequência e a quantidade de tempo de tela estão relacionadas ao desenvolvimento reduzido de estruturas de controle, tanto em termos de microestruturas da substância cinzenta quanto da substância branca, e à conectividade reduzida entre as áreas subcortical, frontal e parietal envolvidas nas redes atencionais e de controle dos impulsos. Estão relacionadas ainda à alteração nas áreas de controle relevantes para os processos emocionais.

A permanência exagerada das crianças no mundo virtual empobreceu, por sua vez, as interações familiares. Nesse sentido, a família não dialoga, não ensina palavras. O excesso de adesão ao virtual, desse modo, está criando a prevalência de pensadores concretos, que não refletem, que não imaginam e que não têm acesso a símbolos diferenciados a partir dos quais possam dar um salto metafórico para longe da aderência rígida à realidade concreta. O pensamento concreto empurra em direção à atuação imediata ou à descarga do desejo apenas (Araújo, 2021, 2023).

A capacidade para reflexão e para o pensamento simbólico não é inata e depende intrinsecamente do vínculo com outro ser humano afetivamente significativo. O ser humano é uma criatura social, que compartilha sua mente com várias outras mentes. Segundo Cozolino (2016), ter uma testemunha ativa os sistemas sociais do cérebro, levando à consciência de como se é percebido pelos outros e a uma perspectiva mais objetiva sobre a visão egocêntrica do indivíduo.

Winborn (2022) relata que atualmente observa-se um grande número de pessoas que permaneceram no pensamento concreto e literal, não sendo capazes de usar adequadamente sua função simbolizante. Assim, o aparecimento do ChatGPT se dá nessas circunstâncias, quando já se nota, há muito, um empobrecimento da vida psíquica.

Pesquisadores do Laboratório de Ciência da Computação e Inteligência Artificial do Massachusetts Institute of Technology - MIT, em entrevista a Nelson (2023), relatam que os modelos de linguagem atuais de IA têm um conjunto restrito de habilidades. Eles dizem que esses modelos não conhecem o mundo, não conhecem os estados mentais de outras pessoas e não sabem como as coisas são (Nelson, 2023).

O ChatGPT-4 tem uma forma de inteligência que está longe da inteligência humana, segundo os pesquisadores desse laboratório. Esses modelos de IA são hipóteses computacionais sobre o que o cérebro faz.

Sabe-se que as crianças podem formar relações profundas com objetos inanimados - como um boneco, um urso e um travesseirinho -, e agora elas têm uma ferramenta que lhes dá exatamente o que elas precisam, porque a IA será incrível para descobrir o que cada criança quer. Elas agora são capazes de atribuir características humanas aos produtos de IA e com eles estabelecer vínculos que podem superar suas relações humanas.

É importante garantir que os produtos de IA ajudem as crianças a cultivar competências para a vida, especialmente competências sociais, que promovam o envolvimento humano, em vez de substituir completamente as interações humanas. Uma preocupação significativa reside na intimidade artificial, pois os produtos emergentes de IA podem simular relacionamentos - o amigo artificial.

À medida que os modelos de linguagem evoluem, o potencial da IA para promover o vício aumenta porque ela se envolve com os usuários individualmente, reforçando o uso a longo prazo. Isso afeta desproporcionalmente as crianças, pois elas não possuem funções executivas totalmente desenvolvidas e a possibilidade do comportamento inibitório é precária (Araújo, 2023).

Em relação a amizades, antes, tinha-se o amigo imaginário; depois, o virtual; e agora, o artificial. Essa progressão pode não ser boa, pois o intercâmbio emocional presencial é que possui influência decisiva sobre o processo de maturação da criança. Os elementos das conexões relacionais originais permanecem operativos pela vida inteira do indivíduo, gravados na memória implícita, que é a base para a organização das percepções e que irá gerar, pela formação de objetos transicionais, a progressão para a representação simbólica. Ferramentas como a IA podem ser um complemento muito interessante para uma realidade que está sendo construída em função das trocas afetivas e cognitivas com outro ser da mesma espécie.

Desmurget (2023) publicou recentemente o livro "Faites-les-lire! Pour em finir avec le crétin digital", em que propõe um antídoto para o excesso de telas e mostra como o hábito e o gosto pela leitura pode ser estimulado pelos pais. O autor sugere que eles leiam histórias para seus filhos desde o berço e ao longo da infância e que os temas sejam compartilhados em uma boa relação vincular.

 

Conclusão

Atributos como esforço, inteligência, leitura, linguagem, atenção e imaginação continuam necessários. A autodisciplina, concebida como a capacidade de colocar o necessário antes do prazeroso, é fator central para o sucesso acadêmico e profissional.

A construção do conhecimento é um processo diferente do armazenar informação. O conhecimento verdadeiro exige e não se encontra apenas no intelecto, pois é experiencial e transformador. Conhecimento verdadeiro demanda aprender com um mestre, discutir com outros, refletir e esperar pelo entendimento, que é o insight.

No momento atual, busca-se a facilidade, o conhecimento imediato, e o ChatGPT atua nesse sentido. Porém, os problemas são anteriores, pois crianças e adolescentes leem pouco e escrevem pouco. Não se dá importância à aquisição das capacidades de reflexão e de simbolização. As experiências humanas vão gradualmente se modificando e observa-se hoje um empobrecimento das funções psíquicas e a superficialidade nas condutas interativas, sociais e culturais. O uso de tecnologias sofisticadas contribuiu para a evolução do quociente de inteligência ao longo do desenvolvimento da humanidade. Será que o uso de tecnologias facilitadoras, como a IA, pode ter o efeito oposto, pode gerar um declínio da inteligência, por menos esforço cognitivo e menor necessidade de abstração?

A internet, como ferramenta, é neutra e a IA pode representar uma possibilidade de melhoria e de otimização ou pode ser uma ameaça. O melhor caminho talvez ainda seja a adaptação. Como afirmou Darwin, "Quem sobrevive na natureza não é necessariamente o mais forte, mas sim o que melhor se adapta ao ambiente" (Vitorio, 2021, [sem p.]).

 

Referências

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Recebido: 30 nov 2023
1a revisão: 09 jan 2024
Aprovado: 10 jan 2024
Aprovado para publicação: 26 jan 2024

 

 

Conflito de interesses: A autora declara não haver nenhum interesse profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a este manuscrito. A autora declara não haver nenhum interesse profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a este manuscrito.
Minicurrículo: Ceres Alves de Araújo - Doutora em Distúrbios da Comunicação Humana pela Universidade Federal de São Paulo - Unifesp; mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP; psicóloga pela PUC/SP. Analista junguiana pela Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica - SBPA e membro da Academia Paulista de Psicologia - Cadeira 39. Professora pesquisadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC/SP. São Paulo/SP, Brasil. E-mail: ceres.ceresaraujo@gmail.com