DIVULGAÇÃO | ARTIGO ORIGINAL
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2024.vol9.213

 

Jung, Winnicott e a psique cindida

 

Jung, Winnicott and the divided psyche

 

 

Mark SABANI; Tradução de Norcirio Silva QUEIROZII

IUniversity of Essex. Colchester, Essex, United Kingdom
IIUniversidade Federal do Paraná - UFPR. Curitiba, PR, Brasil

 

 


RESUMO

Em sua resenha de "Memories Dreams Reflections", Winnicott diagnosticou Jung como sofrendo de uma cisão psíquica e caracterizou o conteúdo e a estrutura da psicologia analítica como moldados e condicionados principalmente pela busca defensiva de Jung por um "self que ele pudesse chamar de seu". Esta análise patologizante continua a ser endossada por escritores junguianos contemporâneos. Neste artigo tento mostrar que a crítica de Winnicott é fundamentalmente equivocada, pois deriva de um modelo psicanalítico da psique, um modelo que considera toda dissociação como necessariamente patológica. Argumento que a compreensão de Jung sobre a psique difere radicalmente deste modelo e, além disso, que corresponde, em geral, ao tipo de modelo dissociativo que encontramos nos escritos de Frederic Myers, William James e Theodor Flournoy. Concluo que uma relação fecunda entre Psicanálise e Psicologia Analítica depende da consciência dessas importantes diferenças entre os dois modelos psíquicos.

Palavras-chave: Winnicott, dissociação, Myers, Flournoy, Janet, psique múltipla.


ABSTRACT

In his review of "Memories Dreams Reflections", Winnicott diagnosed Jung as suffering from a psychic split, and characterized the content and the structure of analytical psychology as primarily moulded and conditioned by Jung's own defensive quest for a 'self that he could call his own'. This pathologizing analysis continues to be endorsed by contemporary Jungian writers. In this paper I attempt to show that Winnicott's critique is fundamentally misguided because it derives from a psychoanalytic model of the psyche, a model that regards all dissociation as necessarily pathological. I argue that Jung's understanding of the psyche differs radically from this model, and further, that it conforms by and large to the kind of dissociative model that we find in the writings of Frederic Myers, William James and Theodor Flournoy. I conclude that a fruitful relationship between psychoanalysis and analytical psychology must depend upon an awareness of these important differences between the two psychic models.

Keywords: Winnicott, dissociation, Myers, Flournoy, Janet, multiple psyche


 

 

Introdução

Quando Donald Winnicott escreveu sua famosa resenha de 1964 do "Memories Dreams Reflections" ("Memórias, Sonhos, Reflexões" (MSR)) (Jung, 1989) para o International Journal of Psychoanalysis - JAP (Winnicott, 1992), optou por se concentrar na descrição de Jung, nos três primeiros capítulos do livro, do que ele chamou de suas "duas personalidades". A descrição de Jung da "dissociação" de sua infância forneceu a Winnicott o que ele precisava para elaborar uma crítica da psicologia analítica. Embora esta "evidência" tenha assumido formato clínico e pessoal, a crítica visou trabalhar a partir de uma base teórica com pressupostos teóricos (psicanalíticos).

Em resumo, Winnicott argumentou que a dissociação admitida por Jung (as "duas personalidades") fornecia evidências de uma esquizofrenia infantil, que deixara Jung a) sem inconsciente e b) engajado numa busca vitalícia por um self1 viável. Sua conclusão foi que, embora a cisão psíquica de Jung o tivesse condenado a viver uma vida pautada num "beco sem saída" (Winnicott, 1992, p. 320), eventualmente (através da escrita do MSR), Jung alcançou algo semelhante a um "self unitário", conforme nomeado por Winnicott (1992, p. 324). Winnicott foi mais além ao sugerir que tanto o conteúdo quanto a estrutura da psicologia analítica (enquanto criação de Jung) são, principalmente, moldados e condicionados pela busca defensiva do próprio Jung por um "self que ele poderia chamar de seu" (1992, p. 327). Embora Winnicott tenha tentado moderar as suas críticas com mornos elogios a Jung, parece bastante claro que a resenha é uma crítica à capacidade da psicologia analítica de funcionar como um modelo psicoterapêutico universal. Winnicott está, no entanto, disposto a reconhecer que um conhecimento dos escritos de Jung pode ajudar "aqueles com personalidades unitárias saudáveis" a alcançarem empatia com "aqueles [como Jung] cujos selves divididos lhes dão constantes problemas" (1992, p. 327-28). O único uso da psicologia junguiana, em outras palavras, é a possibilidade de fornecer uma visão interna de uma psique que está sofrendo de um transtorno psicótico.

O aparente fascínio de Winnicott por Jung (de acordo com William Meredith-Owen, ele esteve "profundamente imerso em Jung" durante seus últimos dez anos (Meredith-Owen, 2011b, p. 676) e sua leitura atenta do MSR foi conduzida no original em alemão) parece ter sido acompanhada por uma aversão mal disfarçada pela psicologia analítica. Sua resposta irritada quando exposto (em uma conferência sobre contratransferência!) à terminologia junguiana foi: "Não posso comunicar-me nesta linguagem" (Winnicott, 1990, p. 159). Como observa Donald Kalsched: "Uma rejeição tão categórica [] aniquila qualquer conversa desde o início" (Kalsched, 2013, p. 270). Em sua resenha do MSR, Winnicott encontra uma maneira diferente de aniquilar a conversa ao empunhar a desgastada lâmina psicanalítica da patologização ad hominem. Por meio dessa ferramenta, ele diagnostica a psicose de Jung e a consequente loucura de sua psicologia. Então, como se soubesse que ele talvez tenha ido longe demais, Winnicott escreve com uma enganosa suavidade, embora letal: "Se quero dizer que Jung estava louco e que se recuperou, não estou fazendo nada pior do que faria ao dizer de mim mesmo que estava são e que através da análise e da auto-análise, alcancei um certo grau de insanidade" (1992, p. 320). Como Jeffrey Morey, num artigo de 2005, observa com considerável moderação: "Estas declarações não me parecem equivalentes, apesar da sua ressalva" (Morey, 2005, p. 340).

É impressionante quantos escritores da tradição junguiana, particularmente dos últimos 30 anos, parecem ter sido convencidos por esta crítica patologizante de Winnicott. Talvez os melhores exemplos desta tendência sejam os artigos recentes de William Meredith-Owen (2015, 2014, 2011a, 2011b). Embora seus artigos contenham, sem dúvida, uma riqueza de insights, quando se trata da análise de Meredith-Owen de Jung e do MSR, às vezes, é difícil diferenciar Meredith-Owen de Winnicott. O mundo da personalidade número 2 de Jung, por exemplo, é descrito como uma compensação de uma ausência emocional materna - um "seio remendado" para cobrir o que é descrito como 'um núcleo "vazio" e potencialmente psicótico' (Meredith-Owen, 2011b, pp. 688, 674).

Meredith-Owen faz a interessante observação (no mesmo artigo) de que, embora logo após a resenha de Winnicott, "muitos junguianos tenham sentido que Winnicott interpretou a realização criativa de seu sujeito como nada mais que um produto defensivo da patologia... [desde aquela época] o clima predominante nos círculos junguianos mudou consideravelmente" (2011b, p. 677). Isto implica que houve uma mudança, entre os junguianos, de uma rejeição inicial instintiva do aparente reducionismo de Winnicott para uma apreciação mais matizada da validade dos seus insights. Isto apesar do fato de que, como Meredith-Owen aponta, Winnicott concentrou seus comentários na "sombra de Jung" e foi incapaz de conseguir "uma apreciação mais completa" da psicologia de Jung, uma vez que ela "simplesmente não era tão 'útil' para ele" (Meredith-Owen, 2015, p. 17).

Os "círculos junguianos" que Meredith-Owen sugere serem receptivos às ideias de Winnicott não se estendem a Donald Kalsched, que num livro recente, "Trauma and the Soul" (2013), lançou uma contraofensiva. Kalsched aborda não apenas Winnicott ('Em sua análise patologizante do início da vida de Jung, acredito que Winnicott nos fornece uma meia-verdade que ao mesmo tempo nos engana e nos deixa encalhados num mundo unidimensional do tão conhecido reducionismo psicanalítico" (2013, p. 245)), mas também aqueles "analistas junguianos [que] estranhamente se alinham com a análise reducionista de Winnicott" (Meredith-Owen, 2015, p. 268).

Kalsched não tem problemas com a ideia de que a retirada de Jung para o mundo espiritual ocorreu parcialmente como uma reação defensiva a um trauma precoce. No entanto, ele destaca um ponto importante quando afirma:

uma coisa é reconhecer o uso de um mundo espiritual a serviço da defesa, e outra é concluir que o mundo interior é apenas um artefato de um processo defensivo que emerge de um trauma precoce nas relações objetais [] esse reducionismo torna todos os processos transpessoais na psique derivados de relacionamentos pessoais fracassados, ou seja, reduz a psique a "um mundo", ou seja, o mundo externo (Kalsched, 2013, pp. 268-269).

O ponto principal de Kalsched é que a abordagem de Winnicott pode possuir uma

Estamos suspensos entre dois mundos - um pessoal e material, um impessoal (coletivo) e espiritual. Esta é a nossa condição humana e também a nossa situação humana. Uma história completa da nossa totalidade potencial em profundidade exigirá que olhemos através dos dois "olhos" ao mesmo tempo (Kalsched, 2013, p. 281).

Eu iria mais longe: este não é apenas o caso, mas é especificamente recomendado na psicologia de Jung: "Qualquer pessoa que perceba sua sombra e sua luz simultaneamente vê a si mesma de dois lados e, portanto, fica no meio" (Jung, 1959/1970, para. 872).

Parece-me que a questão aqui não é se o argumento patologizante de Winnicott funciona ou não. A questão muito mais importante é se uma abordagem winnicottiana da psique possui a capacidade de produzir uma abordagem crítica genuína à psicologia junguiana. Para encontrar uma resposta a esta questão, é necessário uma compreensão mais matizada da natureza da relação entre "Winnicott" e "Jung" do que parece disponível.

Parece-me que há mais coisas em jogo nesta questão do que qualquer um dos comentadores, incluindo Kalsched, tenha tornado visível até agora. Eu penso que podemos fazer melhor do que simplesmente contrapor as palavras de Winnicott às de Jung. Quer Meredith-Owen esteja correto ou não quando afirma que a resenha de Winnicott do MSR é "uma fonte inesgotável de conhecimento sobre ambos os homens" (Meredith-Owen, 2014, p. 4), o que parece certo é que esta tem muito a oferecer enquanto fonte de insights das diferenças teóricas entre dois modelos psíquicos bastante distintos. É neste nível que pretendo situar o meu argumento.

O que até agora tem ocultado este tópico, além de uma determinação persistente em personalizar a questão, tem sido uma suposição tácita no que diz respeito à relação entre a psicologia junguiana e a psicanálise (aqui na sua encarnação das relações objetais). Esta suposição se torna clara na sugestão de Meredith-Owen de que a prática clínica de Jung (e, por extensão, a metapsicologia que estrutura essa prática) teria sido bem diferente se "Jung tivesse tido acesso ao que agora somos capazes de tomar como certo - por exemplo, a centralidade do conceito de continente/conteúdo e as suas raízes no devaneio materno" (Meredith-Owen, 2011b, p. 683).

A partir desse contexto, pareceria que "o que agora podemos tomar como certo" deveria ser considerado como mais ou menos coextensivo com "as verdades reveladas pela teoria das relações objetais". A sugestão fundamental é então que se adicionarmos "as verdades reveladas pela teoria das relações objetais" à "psicologia junguiana", então esta última será atualizada e, portanto, melhorada. O que para Meredith-Owen dá mais peso às palavras de Winnicott do que às de Jung é o fato de que "Winnicott [ao contrário de Jung] poderia recorrer aos insights decorrentes da análise infantil iniciada por Klein e trazida para apoiar o extenso trabalho clínico com pacientes borderline realizado por Rosenfeld, Bion e outros (Meredith-Owen, 2011b, p. 683).

Existem várias suposições questionáveis ​​contidas nesta ideia, mas a que mais quero chamar a atenção é a ideia de que a psicologia junguiana, como sistema, é, por assim dizer, suficiente e anatomicamente semelhante à psicanálise (em sua variedade de relações objetais) para ser capaz de aceitar doações de órgãos desse tipo sem um resultado catastrófico e potencialmente fatal. Morey defendeu praticamente o mesmo ponto num artigo do JAP de 2005, com esta importante questão retórica: 'Será que a integração destas teorias [Junguiana e Relações Objetais] mantém uma sensibilidade coerente ou tal combinação viola pressupostos fundamentais subjacentes?' (Morey, 2005, p. 335).

 

A questão da dissociação

Como vimos, a questão sobre a qual Winnicott escolhe centrar seu argumento na sua resenha de MSR é acerca da dissociação, e, especificamente, a dissociação infantil de Jung, tal como representada na sua descrição das suas "duas personalidades". Como nós também vimos, Winnicott patologiza esta dissociação como uma "cisão da personalidade" e afirma que Jung possuía uma "personalidade cindida" (Winnicott, 1992, p. 368), um diagnóstico que de alguma forma consegue combinar gravidade clínica com total imprecisão. Visto que Winnicott dá tanta importância a esta questão, é particularmente importante que prestemos muita atenção ao que o próprio Jung tem a dizer sobre as suas duas personalidades:

O jogo e o contrajogo entre as personalidades nº 1 e nº 2, que atravessou toda a minha vida, nada tem a ver com uma "cisão" ou dissociação no sentido médico comum. Pelo contrário, ocorre em cada indivíduo (Jung & Jaffé, 1989, p. 45).

Jung está fazendo uma tentativa perspicaz, embora ultimamente condenada ao fracasso, para evitar qualquer patologização futura antes que ela comece, com uma insistência categórica de que o relacionamento dinâmico entre suas duas personalidades de forma alguma deve ser considerado um sinal de transtorno mental. Mas o que é muito mais interessante, e muito mais importante, é a sua afirmação adicional de que tal dinâmica é comum a todos nós: "Ela ocorre em cada indivíduo". Deve-se notar também que Jung está colocando ênfase não no fato das duas personalidades, mas no relacionamento entre elas. Como veremos, esta é uma ênfase crucialmente importante.

É particularmente surpreendente que Winnicott (e os seus simpatizantes posteriores) geralmente ignorem esta observação de Jung.2 Eu sugeriria que isto acontece porque simplesmente não se ajusta aos seus preconceitos teóricos no que diz respeito à dinâmica e à topologia da psique.

Na sua resenha do MSR, as ideias que Winnicott parece tomar como certas são essas: primeiro, que qualquer psique saudável será, por definição, unitária (ou, como ele a descreve, uma "psique unitária") e, segundo (o que se segue disto), que a única função do inconsciente é ser um local de depósito de tudo o que a 'psique unitária' precisa reprimir:

O que quer que Freud fosse, ele tinha uma personalidade unitária, com um lugar em si para o seu inconsciente. Jung era diferente. Não é possível a uma personalidade cindida ter um inconsciente, por não haver lugar para ele ficar. Tal como nossos floridos pacientes esquizofrênicos [...] Jung sabia de verdades inacessíveis à maioria dos homens e mulheres, mas passou sua vida procurando um lugar para guardar sua realidade psíquica interna, embora tal tarefa fosse na realidade impossível (Winnicott, 1992, p. 324).

Winnicott identifica uma incompatibilidade fundamental não apenas entre a psicologia pessoal de Jung e de Freud, mas, por extensão, entre as psicologias que eles foram responsáveis por criar. Sua articulação da natureza dessa diferença parece precisa até certo ponto, na medida em que ele implicitamente localiza a lacuna entre eles em uma discordância fundamental sobre a natureza e a função do inconsciente. Para Winnicott (e para o Freud de Winnicott), o inconsciente é um lugar para o que é reprimido. Como ele enfatiza:

O psicanalista sacrificaria valores essenciais se abandonasse os vários significados que Freud dá à palavra inconsciente, incluindo o conceito de inconsciente reprimido. Não é possível conceber um inconsciente reprimido com uma mente cindida; em vez disso, o que se encontra é a dissociação (Winnicott, 1992, p. 325).

Em outras palavras, se aceitarmos o modelo da psique baseado na repressão de Freud, a única alternativa à posse de uma "personalidade unitária" é a dissociação patológica. O que Winnicott não parece ser capaz de compreender (e isto também explica a sua incapacidade de ouvir a afirmação de Jung sobre a natureza não patológica do "jogo e contrajogo" entre as suas duas personalidades) é a noção de que Jung está expressando não apenas um sintoma da sua "esquizofrenia infantil", mas antes um modelo alternativo plenamente desenvolvido da psique e de sua dinâmica. Além disso, este modelo é radical e fundamentalmente diferente daquele que Winnicott assume ser o correto. A clara recusa de Winnicott em levar a sério a afirmação de Jung talvez pudesse ser convincente se Jung estivesse usando oportunisticamente o MSR para improvisar uma justificativa para os efeitos evidentemente patológicos da "personalidade cindida" que ele está prestes a descrever. Contudo, este não é o caso. Os comentários de Jung sobre suas duas personalidades não são apenas inteiramente consistentes com todos os aspectos de sua psicologia madura, mas o modelo particular da psique que Jung está propondo aqui (uma psique múltipla que existe na interação dinâmica entre a consciência do ego e outras consciências autônomas, personalidades ou subpersonalidades) era um modelo com uma proveniência histórica perfeitamente respeitável que durante algum tempo foi suficiente e intelectualmente poderoso para o próprio Freud ter sentido a necessidade de combatê-lo com unhas e dentes (Keeley, 2001).3

Para elucidar esta questão da dissociação e seu lugar na psicologia junguiana, pretendo examinar as ideias sobre a psique e sua estrutura que influenciaram Jung durante o período crucial de 1900 a 1918 e que contribuíram de diferentes maneiras para o modelo psíquico que ele acabaria por adotar. Irei distinguir três abordagens teóricas da dissociação, um tema que foi calorosamente debatido neste período, embora tenha se tornado praticamente ignorado no período pós-guerra, durante o qual as ideias psicanalíticas freudianas se tornariam hegemônicas.4 Essas três abordagens teóricas (nenhuma dos quais é monolítica, mas cada uma das quais tratarei, para fins de argumentação, como um conjunto mais ou menos unificado de ideias) são: 1) a de Myers, James e Flournoy; 2) o de Janet e a "escola francesa"; e 3) o de Freud.

Minha tese é que a psicologia de Jung deveria ser considerada como operando por e grandemente de acordo com um modelo de psique bastante diferente daquele que encontramos na tradição psicanalítica. Também afirmo que é consideravelmente diferente do modelo que encontramos em Janet. É mais consistentemente semelhante ao modelo que encontramos em Myers, James e Flournoy.

Parece-me que a supressão intencional e deliberada de ambos os modelos de dissociação pelos primeiros psicanalistas cedeu lugar a um período de ignorante esquecimento, mesmo no discurso junguiano, de modo que as próprias dívidas de Jung com esses modelos se tornaram em grande parte invisíveis. O resultado tem sido uma profunda confusão sobre a natureza da psicologia de Jung, uma confusão frequentemente evidenciada nos escritos de muitos junguianos contemporâneos. Este ponto não é original - meu trabalho aqui depende dos estudos cuidadosos e persuasivos de, por exemplo, Ellenberger (2008), Taylor (1980, 1986, 1996, 1998), Shamdasani (1993, 1994, 1998, 1999, 2000, 2002, 2003) e Haule (1983, 1984, 1986).

 

A tradição dissociacionista

Durante o final do século XIX, o conflito intrapsíquico foi conceituado grandemente de maneiras variadas, como deveríamos esperar, dados os vários modelos heterogêneos da psique e seu funcionamento que foram considerados neste período. A vitória e a subsequente hegemonia do(s) modelo(s) psicanalítico(s) de Freud, combinada com a ampla aceitação de uma narrativa heroica pela qual Freud "descobriu" sozinho o inconsciente, juntamente com a suposição de que uma topologia da psique foi mapeada com a ajuda de um bússola psicanalítica é a única alternativa viável ou mesmo possível dentro da psicologia profunda, todos conspiraram para remeter modelos psicológicos rivais para a lata de lixo da história intelectual. Em termos de psicologia analítica, essas suposições também levaram à suposição adicional de que, por mais excêntrica que a psicologia de Jung possa parecer, seu modelo de psique deve, num nível fundamental, ser consistente com o da teoria de tradição psicanalítica. Esta suposição parece, como vimos, não apenas ter sustentado os comentários de Winnicott, porém, mais crucialmente, ter permitido o enxerto em massa de vários membros pós-freudianos no corpo da psicologia de Jung por Fordham e pela então chamada escola junguiana de Londres depois da Segunda Guerra Mundial.

Na verdade, a psicologia de Jung deve muito a tradições que eram bastante estranhas às de Freud e da psicanálise. Em particular, Pierre Janet na França, Frederic Myers na Inglaterra, William James nos EUA e Theodor Flournoy na Suíça elaboraram modelos da psique e da vida psíquica que, apesar de todas as suas variações, eram coerentes num ponto importante: a dissociabilidade fundamental da psique.

Os comentários de Jung no MSR, caracterizando a dissociação como algo que "acontece em cada indivíduo", foram escritos em idade extremamente avançada. Contudo, pode-se rastrear a presença de ideias comparáveis ​​pelo menos desde a sua tese de doutorado, "Sobre a psicologia e a patologia dos chamados fenômenos ocultos" (Jung, 1902/1970). Jung identificou as diversas figuras evocadas pelo inconsciente da médium (sua prima adolescente) como aspectos divididos de sua psique. Segundo Jung, a médium levava "uma verdadeira 'vida dupla', com duas personalidades existindo lado a lado ou em sucessão, cada uma lutando continuamente pelo domínio" (1902/1970, para. 44). A sua conclusão provisória foi que tal desenvolvimento não é necessariamente patológico; pode ter tido um caráter teleológico, uma vez que é "concebível que os fenômenos da dupla consciência sejam simplesmente novas formações de caráter, ou tentativas da personalidade futura de romper" (1902/1970, para. 136).

Que Jung tenha chegado a tal conclusão não é de forma alguma surpreendente dado o contexto intelectual contemporâneo. Na verdade, era inteiramente consistente com ideias facilmente encontradas nos trabalhos de vários psicólogos que influenciaram o trabalho de Jung nessa época, e particularmente de Théodore Flournoy. Em seu livro "From India to the Planet Mars" (Flournoy 2015),5 Flournoy apresentou a médium Hélène Smith como um caso de personalidade múltipla. Tal caso deu peso à afirmação anterior de William James (um amigo próximo de Flournoy) de que "a possessão mediúnica em todos os seus graus parece formar um tipo especial perfeitamente natural de personalidade alternativa" (James, 1890, p. 393). James e Flournoy enfatizaram que na vida "normal" o médium exibia uma consciência saudável, e concluiu, portanto, que certos tipos ou níveis de personalidade múltipla ou dissociada podem ocorrer na psique não patológica. No mínimo, abriu a possibilidade de que um nível de dissociação pudesse ser consistente com a normalidade psicológica.

Essa mesma questão dividiu os psicólogos da época, mesmo entre aqueles para quem a dissociação era uma realidade psíquica evidente. No geral, os psicopatologistas franceses, como Pierre Janet, argumentavam que o médium era um tipo patológico. A suposição subjacente de Janet era que os sintomas de dissociação sempre indicavam algum tipo de patologia. Na verdade, Janet chegou ao ponto de sugerir que, uma vez que uma consciência saudável era inteiramente unitária, processos subconscientes (isto é, inconscientes) simplesmente não poderiam ocorrer em pessoas saudáveis ​​(Wright, 1997). Janet apresentou e detalhou histórias de casos nas quais, com a ajuda da hipnose, ele invariavelmente rastreava os sintomas de seus pacientes até um evento traumático que havia sido esquecido pela personalidade consciente primária. O trauma, na verdade, havia dividido a psique em duas (ou mais) personalidades, cada uma das quais possuía algum tipo de consciência. No entanto, foi possível ao terapeuta obter acesso à personalidade "subconsciente" através da hipnose, dos sonhos, da escrita automática etc., e assim atingir o objetivo terapêutico de ajudar o paciente a recuperar a unidade de consciência que era própria de uma psique saudável.

Flournoy e seus colegas Myers e James consideraram os dados cuidadosamente observados por Janet inestimáveis, uma vez que forneciam um suprimento abundante de casos exibindo dissociação psíquica. No entanto, quando se tratou de formular hipóteses sobre o que consideravam os aspectos produtivos e criativos de uma psique múltipla, Flournoy e seus amigos encontraram-se em desacordo tanto com Janet quanto com Freud.

Frederic Myers e William James eram membros ativos da Society for Psychical Research, uma organização britânica criada (em 1882) para conduzir investigações científicas das reivindicações do espiritualismo, mas que rapidamente estendeu seus experimentos e pesquisas aos campos relacionados de assombrações, clarividência, sonhos precognitivos e telepatia (uma palavra cunhada por Myers em 1882 (p. 147)). Na verdade, Myers foi provavelmente a primeira pessoa a sugerir por escrito que poderia existir um estado separado de consciência simultaneamente ao lado da consciência normal, hipótese que surgiu de suas extensas pesquisas sobre o fenômeno da escrita automática. Já em 1885 ele cunhou o termo "eu secundário", um termo mais tarde adotado por Janet (Myers, 1885, p. 27). Inspirado pelo sucesso de Janet de conseguir a corroboração experimental desses eus secundários em histéricos, em 1886, o colega de Myers, Edmund Gurney, iniciou uma série de experimentos altamente bem-sucedidos em sujeitos comuns. À luz deste trabalho, William James afirmou com segurança que o que tinha sido demonstrado era "a existência simultânea de dois estratos diferentes de consciência, ignorantes um do outro, na mesma pessoa" (James, 1892, p. 688). A multiplicidade de personalidade não era em si um fenômeno novo, mas o que havia de novo no trabalho de Myers, Gurney e Janet era a confirmação da presença de eus secundários que agiam simultaneamente com o eu primário (ou ego).

A teoria da psique "subliminar" de Myers rejeita a ideia de uma consciência unitária e, em vez disso, sugere que a psique tem um "caráter [...] composto" (1903a, p. 9). Para Myers, o eu comum do dia-a-dia "não compreende a totalidade da consciência ou da faculdade dentro de nós", uma vez que, abaixo do limiar da consciência normal existem "Eus subliminares" (1903, p. 14). A unidade da psique é, portanto, "federativa e instável" (Myers, 1903, p. 16). Esta ênfase no aspecto "desintegrativo" da psique deve, no entanto, ser mantida em tensão com a visão igualmente enfática de Myers do Self como um todo "profundamente unitário" (1903, p. 34). Embora muito disto seja consistente com as descobertas de Janet, Myers vai muito mais longe do que Janet nas suas sugestões: a) que uma medida de dissociação pode ser encontrada na psique normal; b) que "o eu normal ou primário" (ou seja, o ego) "não é necessariamente superior em nenhum outro aspecto às personalidades latentes [ou eus subliminares] que estão ao lado dele" (1888, p. 387); e que c) esses eus subliminares podem e ganham acesso a gamas mais amplas de informações e faculdades do que o ego (que Myers chama de eu supraliminar ou empírico: o eu da experiência comum (1891, p. 305)).

As semelhanças entre a representação da psique feita por Myers e Jung provavelmente indicam uma influência direta,6 embora, como diz Shamdasani, mesmo que Jung não estivesse sob a influência direta de Myers, "teria sido impossível para Jung ter sido significativamente influenciado por Flournoy [...] sem levar em conta também aspectos fundamentais do trabalho de Myers" (2000, p. 462).

Paralelos podem ser encontrados em três áreas cruciais:

1. Presume-se que o inconsciente contém o que Myers descreveu como uma faculdade "mitopoética" (1903b, p. 5), que "produz constantemente fantasias, histórias, imagens poéticas e outras criações espontâneas" (Crabtree, 2009, p. 356). Esta faculdade é responsável não só pelos sonhos e visões, mas também para as subpersonalidades que são criadas e atuadas no transe mediúnico e em outros lugares. Esta dimensão da psicologia de Myers foi retomada e desenvolvida por Flournoy, particularmente em "From India to the Planet Mars" (Ellenberger, 2008, pp. 315-318).

2. Intimamente relacionado com esta faculdade mitopoética está o carácter prospectivo do inconsciente, que também encontramos em Myers e Flournoy (Witzig, 1982, p. 138).

3. A psique (normal) está dissociada: possuímos, além de nossa consciência do ego "'supraliminal", outras consciências, que aparecem na forma de personalidades de transe mediúnico, escrita automática e (na forma patológica) múltiplas personalidades e subpersonalidades histéricas.

É a terceira dessas áreas que me interessa aqui, embora devamos ter em mente que em Myers, Flournoy e James todas essas três áreas estão interligadas, como de fato estão na psicologia de Jung.

 

Jung, o dissociacionista

Como indiquei, a maioria dos comentadores, incluindo a maioria dos comentadores junguianos, presumiram que, após um breve período como um dissociacionista Flournoyano (até e inclusive a redação de sua tese de doutorado), na época de seu livro de 1909 sobre Dementia Praecox, Jung estava totalmente alinhado com as ideias psicanalíticas e, portanto, as diferenças posteriores entre a psicologia de Jung e a de Freud consistiam em maiores ou menores divergências do modelo psicanalítico.

De acordo com esta narrativa, a psicologia madura de Jung, por mais que variasse da psicanálise ortodoxa, ainda se baseava numa metapsicologia psicanalítica. Uma abordagem alternativa, popular entre os adeptos das escolas junguianas "clássicas" ou "arquetípicas", tem sido declarar a psicologia analítica como sui generis, tendo surgido plenamente formada a partir do "confronto com o inconsciente" de Jung na meia-idade. Pode-se encontrar apoio para ambas as posições nos escritos do próprio Jung. O que poucos (por exemplo, Shamdasani, Taylor e Haule) levaram a sério é a ideia de que se pode melhor iluminar aspectos importantes da psicologia madura de Jung considerando-a como um desenvolvimento de certas vertentes da psicologia dissociacionista do final do século XIX. Esta é a hipótese que desejo considerar aqui.

Embora os escritos de Jung em seu período pré-Freud citem e mostrem dívidas intelectuais para com os dissociacionistas franceses e britânicos, desde a época das suas primeiras cartas a Freud, Jung deseja claramente que os seus leitores (e sobretudo o próprio Freud) o considerem um devoto da psicanálise. Ele, portanto, inclui numerosas referências elogiosas a Freud e suas obras.

Contudo, mesmo durante o período quando o próprio Jung estava escrevendo artigos que alinhavam abertamente seu trabalho com o de Freud, como observa Haule, "o leitor cuidadoso descobre que há apenas uma fraca conexão entre esses artigos e as obras contemporâneas de Freud" (Haule, 1984, p. 648). O que Jung e Freud compartilham é o reconhecimento do potencial dos conteúdos inconscientes para irromper e perturbar a consciência do ego. Deste ponto de vista, os complexos que Jung identificou em seus experimentos de associação de palavras parecem amplamente coextensivos com as parapraxias de Freud, e foram presumivelmente considerados como tal por Freud. No entanto, este fato não deve obscurecer as importantes diferenças entre os dois. Por exemplo, como assinala Haule, no trabalho de Jung, 'não há nada que indique que a sexualidade determine todos os complexos ou que se esconda "latentemente" por trás das respostas "manifestas" do paciente. Em vez disso, Jung interpreta as respostas literalmente' (1984, p. 648).

Jung parece ter sido atraído pela ideia de complexo precisamente porque permitiu a possibilidade de subpersonalidades autônomas que, sob certas circunstâncias, poderiam possuir momentaneamente o sujeito de maneiras paralelas, de uma forma um tanto menos dramática, ao comportamento dos alters de personalidade múltipla. Como diz Haule, nesses escritos "a imagem que guia o pensamento de Jung é a de múltiplas, simultaneamente ativas, subpersonalidades" (Haule, 1984, p. 648).

Esta ideia permaneceu importante para Jung muito depois de ele ter perdido o interesse pelo Teste de Associação de Palavras. Em seus escritos maduros, Jung frequentemente fazia questão de enfatizar a importância central de seu trabalho sobre complexos, e tendia a fazê-lo especialmente quando discutia a tendência inata da psique à dissociação. Num artigo de 1934 revisando a teoria complexa, por exemplo, ele esclarece a ligação entre seus escritos sobre complexos e o trabalho de Janet, Prince e outros dissociacionistas (), salientando que "fundamentalmente não há diferença à princípio entre uma personalidade fragmentária e um complexo" (Jung, 1934, para. 202). "A existência de complexos", como diz Jung, "lança sérias dúvidas sobre a suposição ingênua da unidade da consciência...' (1934, para. 200). Em seus "Fatores psicológicos que determinam o comportamento humano" (1936/1972), Jung discute os complexos num parágrafo dedicado à "tendência da psique à cisão", que ele descreve como "fundamentalmente [...] um fenômeno normal" (Jung, 1936/1972, para. 253). Jung nos lembra de sua antiga filiação aos dissociacionistas quando passa a caracterizar os complexos como se comportando "como seres independentes", e não apenas os equipara às "vozes ouvidas pelos loucos", mas também evoca diretamente a tradição myersiana, apontando que eles podem "assumir um caráter de ego pessoal como o dos espíritos que se manifestam através da escrita automática e técnicas similares" (Jung, 1936/1972).

É significativo que Jung prossiga salientando, no artigo de 1936 mencionado acima, que é a dissociabilidade da psique que oferece "a possibilidade de mudança e diferenciação" (1936/1972, para. 255). Para Jung, não só a divisão da psique é perfeitamente normal, é esta mesma divisão que permite à psique autorregular-se, porque cria as condições necessárias para a correção da unilateralidade. Podemos ver esse processo em ação nos encontros de Jung com as figuras autônomas da psique objetiva durante o chamado confronto com o inconsciente, encontros que Jung narra no Livro Vermelho. De acordo com o MSR, Jung aprende com esses encontros que "há algo em mim que pode dizer coisas que não sei e que não pretendo, coisas que podem até ser dirigidas contra mim" (Jung & Jaffé, 1989, p. 198). Fica claro pelo contexto que é a unilateralidade da perspectiva do ego de Jung que necessita deste doloroso processo de correção: "Cada vez que uma nova personificação se desenhava no meu horizonte mental, eu quase a sentia como uma derrota pessoal." (Jung & Jaffé, 1989, p.198).

Jung prossegue desenvolvendo essas ideias em uma técnica terapêutica, sugerindo que embora a tendência espontânea da psique de se manifestar de forma personificada seja importante, pelo menos tão importante é a intenção recíproca (do ego consciente) de moldar eventos inconscientes até então incipientes através de um processo imaginativo de personificação:

O essencial é diferenciar-se desses conteúdos inconscientes, personificando-os e, ao mesmo tempo, relacioná-los com a consciência. Essa é a técnica para despojá-los de seu poder. Não é muito difícil personificá-los, pois eles sempre possuem um certo grau de autonomia, uma identidade própria e separada. A sua autonomia é uma coisa muito desconfortável de se reconciliar e, no entanto, o próprio fato de o inconsciente se apresentar dessa forma dá-nos o melhor meio de lidar com ele (Jung & Jaffé, 1989, p. 187).

Como Craig Stephenson salienta num comentário a esta passagem, o objetivo aqui é que o complexo do ego seja capaz de "experimentar a autonomia do complexo inconsciente como uma psique fragmentada e eventualmente reconciliar-se com as contradições inerentes à realidade psíquica através de um confronto e encontro personificados" (Stephenson, 2009, p. 166). O que Jung está insinuando é que, por mais unilateral que o ego seja, inevitavelmente, se possuir consciência e humildade suficiente, pode procurar um encontro dialógico com o seu próprio outro, constelando assim intencionalmente contradições inerentes dentro da psique, ou, dito de outra forma, facilitando o que Jung gosta de descrever como o encontro de opostos. É evidente que, por mais conflitante que tal encontro possa parecer, ele pode e deve ser provocado por um movimento recíproco de duas pontas. O ego voluntário, possuidor de algo semelhante à "capacidade negativa" de Keats, encontrará em parte e em parte criará aquelas pessoas do inconsciente que também procuram, por assim dizer, serem encontradas.

Estas ideias estão evidentemente em conflito direto com um modelo psicanalítico para o qual a dissociação ocorre apenas na forma patológica de repressão - a menos que seja um sintoma de psicose. Na velhice, Jung insistiu que foi na verdade a insistência exclusiva de Freud no mecanismo de repressão (em oposição à dissociação) que forneceu o ponto inicial de discórdia entre os dois homens. Nas entrevistas de 1957 com Richard Evans, Jung diz, no contexto de uma discussão sobre o Teste de Associação de Palavras:

Esse foi meu primeiro ponto de diferença com Freud. Eu disse que houve casos na minha observação em que não houve repressão de cima, mas a coisa em si é verdade. Aqueles conteúdos que se tornaram inconscientes foram retirados por si mesmos, não foram reprimidos. Pelo contrário, têm uma certa autonomia. Descobri o conceito de autonomia porque esses conteúdos que desaparecem têm o poder de se mover independentemente da minha vontade (Jung, 1987, p. 283).

Como observa Shamdasani:

É um tanto irônico que Jung cite como sua primeira divergência com Freud, a questão sobre a qual foi feita a suposta semelhança entre suas experiências de associação e a psicanálise, e através da qual a primeira deveria fornecer a confirmação experimental da última (Shamdasani, 1998, pp. 120-121).

 

O sonho de cisão

Espero que, ao concentrar-me na questão da dissociação, eu tenha esclarecido as diferenças cruciais entre o modelo junguiano da psique e o de Freud e da psicanálise. É claro que seria errado retratar este último como de alguma forma monolítica. Durante a vida de Freud, esta sofreu mudanças importantes e, desde a sua morte, muitas mais, incluindo aquelas que resultaram na teoria das relações objetais. No entanto, quando se trata da questão específica da dissociação, como podemos ver muito claramente na interpretação winnicottiana do MSR, nada de substancial realmente mudou. Com efeito, para Freud ou para Winnicott, só poderia haver duas possibilidades: a dissociação psicótica ou a repressão neurótica comum. Como as descrições de Jung das duas personalidades não se ajustavam a esta última, o único diagnóstico possível era a primeira.

No entanto, quando se trata do envolvimento de Winnicott com Jung, descobriu-se que a resenha do MSR não foi de forma alguma a sua última palavra. O inconsciente de Winnicott ainda tinha algo a oferecer sobre o assunto. Após a conclusão da resenha, ele relatou a Michael Fordham um sonho, cujo conteúdo ele associou explicitamente a Jung: "Eu também estava ciente, enquanto o sonho fluía sobre mim antes de eu realmente acordar por completo, de que eu estava sonhando um sonho para Jung e para alguns dos meus pacientes, além de mim mesmo" (Winnicott, 1989, p. 229). Este sonho tornou-se, nos últimos anos, objeto de extensos comentários no JAP - primeiro por Morey (2005), depois por Sedgwick (2008) e mais recentemente por Meredith-Owen (2011a, 2011b, 2015). Eu não tenho espaço aqui para fazer uma resenha desses comentários fascinantes. Quero, contudo, acrescentar uma breve nota sobre o sonho, à luz do que escrevi acima, enfatizando as graves tensões teóricas entre o modelo winnicottiano e o modelo junguiano da psique.

O sonho de Winnicott divide-se em três partes:

1. Houve destruição absoluta, e eu fazia parte do mundo e de todas as pessoas e, portanto, estava sendo destruído

2. Então houve destruição absoluta e eu fui o agente destrutivo.

3. A terceira parte apareceu agora e no sonho eu acordei. Quando acordei eu sabia que tinha sonhado (1) e (2). Portanto, resolvi o problema usando a diferença entre os estados de vigília e de sono.

Aqui eu estava, acordado, no sonho, e sabia que havia sonhado sendo destruído e sendo o agente destruidor. Não houve dissociação, então os três Eus estavam totalmente em contato um com o outro. Lembro-me de ter sonhado eu (2) e eu (1). Isso pareceu imensamente satisfatório, embora o trabalho realizado tivesse exigido muito de mim

Agora comecei a acordar.

O que primeiro soube foi que estava com uma dor de cabeça muito forte. Eu podia ver minha cabeça dividida, com um espaço preto entre as metades direita e esquerda. Eu encontrei as palavras 'dor de cabeça terrível' vindo e me acordando, e percebi a adequação da descrição...

Enquanto eu estava deitado, suportando a dor de cabeça, todo o sonho me veio à mente, e junto com isso a sensação de que agora conhecia um significado importante do número três. Eu tinha esses três selves essenciais, eu (3), que conseguia me lembrar de sonhar em ser eu (2) e eu (1). Sem Eu (3) devo permanecer cindido [] (Winnicott, 1989, p. 229, destaque do autor).

Como todos os "grandes sonhos", se não todos os sonhos, o de Winnicott se presta a muitas interpretações possíveis. Meu próprio sentimento, seguindo as ideias de Jung sobre a psique autorregulada e os sonhos como compensações, é que o evento tão marcante, para não dizer um sonho devastador, implica que algum tipo de movimento psíquico compensatório importante foi constelado em Winnicott - o tipo de movimento que pode ser necessário para corrigir uma grave unilateralidade em sua atitude consciente. Eu sugeriria que a atitude em questão foi exemplificada de forma poderosa em sua resenha do MSR, e assumiu a forma de uma cegueira dogmática à interpretação do próprio Jung sobre o significado e o contexto das duas personalidades. Na verdade, como vimos, Winnicott nem sequer reconheceu a afirmação de Jung de que representavam uma forma não patológica de dissociação, na qual o jogo dinâmico e o contrajogo entre duas "personalidades", em última análise, havia habilitado o processo de individuação - o movimento em direção ao Self. O compromisso teórico doutrinário de Winnicott com o "self unitário" e o modelo de repressão, combinado com uma incapacidade de uma "apreciação mais completa" da psicologia de Jung (Meredith-Owen, 2015, p. 17), não deixou espaço para tais dinâmicas dissociacionistas. Seus pressupostos teóricos os tornaram invisíveis para ele.

Winnicott vinculou explicitamente o evento desse sonho ao seu envolvimento contínuo com Jung e à dissociação, mesmo depois de a resenha ter sido escrita. Poderá isto implicar um nível de insatisfação contínua com o seu tratamento anterior do tema da dissociação tal como apareceu na resenha? Parte dessa insatisfação poderia muito bem estar relacionada ao fato de Winnicott, que na resenha havia feito grande parte do contraste entre a sua própria posse de um saudável "self unitário" e a doentia "personalidade cindida" de Jung, estava com uma consciência pesada, uma vez que na realidade, ele "sofreu toda a sua vida" de uma dissociação que "em sua análise pessoal não foi resolvida" (Sedgwick, 2008, p. 543, destaques do autorsel).

O sonho de Winnicott não faz sentido se o abordarmos do ponto de vista do "self unitário" winnicottiano e as dinâmicas de repressão. Winnicott fala sobre "três selves essenciais", primeiro o self como destruído, segundo o self como destruidor e terceiro o self como mediador entre os selves 1 e 2. Sem o terceiro self ele "deve permanecer dividido" - entre os selves 1 e 2, o que parece incapaz de se relacionar por conta própria. Conforme ele descreve, isso produz um estado em que "não havia dissociação, de modo que os três selves estavam totalmente em contato um com o outro". De acordo com os seus próprios pressupostos teóricos, um estado não dissociado deveria ser equivalente ao "self unitário", mas aqui a realização da totalidade parece possuir um carácter bastante diferente: os "três selves" permanecem separados e não se fundem num estado unificado; na verdade, o seu persistente estado de separação é enfatizado: "Eu tinha estes três selves essenciais". Além disso, a imagem que lhe restou foi a de uma "cabeça dividida, com um espaço preto entre as metades direita e esquerda". Crucialmente, a superação da dissociação (patológica) no sonho parece ser alcançada não (como poderíamos esperar dos pressupostos teóricos conscientes de Winnicott) através de algum tipo de fusão em um sonho unitário estado por meio da liberação de um elemento reprimido, mas pela capacidade dos três "selves essenciais" de permanecerem separados e ainda assim estarem "em contato um com o outro".

Meredith-Owen procura amplificar a dinâmica do sonho ligando-o à chamada bi-lógica de Matte Blanco (Meredith-Owen, 2011a). Por mais esclarecedora que tal amplificação possa, em última análise, se revelar, se permanecermos com as associações do sonhador - e é o próprio Winnicott quem enfatiza fortemente o contexto junguiano do sonho - o modelo dinâmico apresentado no sonho parece ter muito mais em comum com o modelo de psicologia junguiano do que com a psicanálise na forma freudiana clássica, nas relações objetais ou mesmo na forma bi-lógica.

O problema atual de Jung, conforme descrito nos primeiros capítulos do MSR, é que suas duas personalidades seguem direções diretamente opostas: por exemplo, Jung descreve a personalidade 1 como ativa e a personalidade 2 como passiva. Isto é experimentado como um sentimento de divisão: ele se vê ocupando primeiro um e depois o outro, mas nenhuma das personalidades por si só, divorciada da outra, deixa ao jovem Jung uma sensação de movimento integrado para a frente. Somente quando ele finalmente encontra uma maneira de fazer as duas personalidades entrarem em contato uma com a outra de forma consciente, apesar da difícil tensão entre elas, que ele pode alcançar um terceiro estado de sizígia que de alguma forma aproveita os dois. Assim, por exemplo, quando Jung se debruça sobre a profissão de psiquiatra, que reúne a inclinação empírica e científica da personalidade 1 com o fascínio da personalidade 2 pela interioridade da alma, ele fica cheio de enorme entusiasmo: "Somente nela [a psiquiatria] poderiam confluir os dois rios do meu interesse, cavando seu leito num único percurso" (Jung & Jaffé 1989, p. 109).

Este ponto me leva a discordar diretamente da leitura do MSR feita por Meredith-Owen. Meredith-Owen afirma que as 'descrições de Jung [no MSR] de "o jogo e o contra-jogo" [...] não descrevem uma integração gradual, mas sim uma perplexidade contínua por permanecer dividido entre basear sua identidade no número 1 ou no número 2' (Meredith-Owen, 2014, p. 9). Gradual ou não, Jung aponta claramente momentos-chave de integração no texto do MSR. Estas atingem um clímax na sua resposta ao importante sonho da "lanterna de tempestade" (Jung & Jaffé 1989, pp. 87-88): uma aceitação consciente de que ambas as personalidades não são apenas essenciais, mas estão intimamente interligadas. É claro que as seções anteriores do MDR atestam eloquentemente períodos de "perplexidade por permanecerem divididos" entre as duas personalidades, mas este estado dá lugar, primeiro a uma dolorosa consciência de que ele é, num certo sentido, ambas as personalidades, e finalmente a uma compreensão de que, para realmente se tornar ele mesmo (ou seja, individuar-se) e viver a partir de toda a sua psique, ele terá de encontrar maneiras de manter a tensão entre eles por meio de negociações constantes. Este é o "terceiro self" do sonho de Winnicott - um eu mediador que conscientemente mantém juntos o self 1 e o self 2 - que se manifestam como opostos. No MSR, Jung finalmente consegue uma aceitação irônica de que "[os] opostos e as contradições entre eles não desaparecem [...] mesmo quando por um momento eles cedem diante do impulso para a ação. Eles ameaçam constantemente a unidade da personalidade e enredam a vida repetidas vezes em suas dicotomias" (Jung, 1989, p. 346). Esta aceitação de que não pode haver um estado final e definitivo de integração, é uma evidência, não da 'perplexidade' de um psicótico em recuperação, mas da humildade de um homem cuja sabedoria duramente conquistada e profundamente sã foi obtido em face da implacável realidade psíquica.

 

Conclusão

A única condição necessária para qualquer relacionamento saudável é uma consciência clara das diferenças fundamentais entre os dois parceiros; a fusão, e especialmente a fusão inconsciente, é sempre um obstáculo ao relacionamento. Isto é particularmente verdadeiro no que diz respeito à relação entre a psicologia junguiana e a psicanálise. Eu argumentaria, portanto, que as minhas conclusões, ao lançarem luz sobre diferenças genuínas entre as duas tradições, aumentam a possibilidade de tal relacionamento no futuro. Estou ciente de que esta ideia me coloca em conflito direto com aqueles que concordo com a famosa descrição de Michael Fordham da divisão entre Freud e Jung como "um desastre e, em parte, uma ilusão, da qual sofremos e continuaremos a sofrer até que tenhamos reparado os danos" (1961, p. 167). Mas apenas uma única entidade pode dividir-se; Freud e Jung nunca formaram esse tipo de unidade. Como eu espero ter demonstrado que os seus modelos psíquicos eram, desde o início, fundamentalmente diferentes. Só quando aceitarmos isto é que poderemos começar a descobrir quais podem ser os frutos de um relacionamento real entre os dois.

 

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Notas dos autores: Este artigo foi traduzido do artigo original "Jung, Winnicott and the Divided Psyche".
Conflito de interesses: Os autores declaram não haver nenhum interesse profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a este manuscrito.
Financiamento: Processo: 88881.846107/2023-01. CAPES, PDSE - Programa de doutorado sanduíche no exterior/PDSE - Edital nº 44/2022 - Seleção 2023
1 Ao longo de sua obra, Winnicott emprega a terminologia "self" de maneira distinta da concepção de Jung. Esta palavra será utilizada em sua terminologia original, conforme as traduções brasileiras de suas obras. No contexto deste artigo, quando mencionada no sentido junguiano, será grafada com a inicial maiúscula, como "Self".
2 Uma exceção é Meredith-Owen, que cita a primeira frase, mas não a segunda. Ele observa a relutância de Jung em aceitar um diagnóstico de dissociação patológica, mas o descarta alegando que "o texto, na verdade a própria textura, de "Memories Dreams Reflections" torna difícil para nós aceitarmos a relutância de Jung em se descrever como dissociado" (2011b, p. 676).
3 Que essa interpretação tenha sido escrita por um psicanalista em 1964 talvez não seja surpreendente. Naquele tempo, a compreensão psicanalítica da psique havia sido praticamente incontestada dentro dos círculos terapêuticos desde o início dos anos 1920 (apesar de suas inegáveis reviravoltas, mudanças e reinvenções durante esse período), e deve ter parecido que quaisquer modelos alternativos da psique (todos muito reais nos anos de 1900 a 1918, nos quais Freud inquestionavelmente os via como sérios rivais para seu próprio modelo) só seriam lembrados como curiosidades intelectuais, na medida em que fossem lembrados. Já em 1929, como memoravelmente descreveu o eminente dissociacionista americano Morton Prince, "a psicologia freudiana havia inundado o campo como uma maré crescente e o restante de nós ficamos submersos como moluscos enterrados na areia na maré baixa" (Borch-Jacobsen & Shamdasani, 2011, p. 300).
4 Nos últimos anos, por várias razões, ele recuperou visibilidade, e com isso veio uma reavaliação importante do trabalho de Janet.
5 N.T.: Da Índia para o planeta Marte (tradução livre). Não há versão traduzida para o português.
6 Existem numerosas possíveis ligações alternativas e fontes comuns, como pensadores românticos como Carl Gustav Carus (1789-1869). No caso de Myers, essa influência teria chegado através de seu profundo conhecimento dos poetas românticos ingleses, especialmente Wordsworth e Coleridge.