ARTIGO DE REFLEXÃO
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2019.vol04.0006

 

Apolo adentra a clínica junguiana: reflexões sobre a contratransferência

 

Apolo enters de Junguian clinic: reflections on countertransference

 

Apolo entra en la clínica junguiana: reflexiones sobre contratransferencia

 

 

Marlon REIKDAL

Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil

 

 


RESUMO

Frente ao preconceito pautado no argumento de que o mundo precisa deixar de ser apolíneo ou que o analista junguiano deve afastar-se de Apolo, este trabalho reflete sobre a real necessidade de interdição de Apolo na clínica. Para isso, resgataram-se as diferentes abordagens que caracterizam o deus da mitologia grega como figura complexa e multifacetada. Sua presença no consultório suscitou o estudo da transferência e da contratransferência. Como ferramenta de análise, extraiu-se das características de Apolo o que parecia mais marcante na possível interferência à atuação clínica: o poder e o distanciamento emocional. Em forma de julgamento, referindo-se à condenação do logos no meio junguiano, este trabalho se transformou numa carta em defesa de Apolo e de todos os deuses, sem a necessidade do sacrificium intellectus. O temenos analítico revela-se como arena de vozes, palco do politeísmo, onde todos os deuses podem e devem se presentificar sem qualquer interdição a um ou outro para que o analista cumpra com o seu papel.

Descritores: mitologia, poder, contratransferência.


ABSTRACT

In face of the argument that the world should stop being Apollonian or the Jungian analyst should move away from Apollo, this study reflects on the real need of interdicting Apollo in analytical practice. For this, the different approaches that characterized the god of the Greek mythology as a complex and multifaceted figure were rescued. His presence in the psychologist's office led to the study of transference and counter-transference. As a tool for analysis those characteristics of Apollo were highlighted, which seemed most striking in the possible interference with clinical work: power and emotional detachment. In the form of judgment, referring to the condemnation of logos in the Jungian milieu, this work became a statement in defense of Apollo and all the gods for there is no need for the sacrificium intellectus. The analytical temenos reveals itself as an arena of voices, the stage of polytheism, where all the gods can and should be present with no interdiction to one or the other, for the analyst to fulfill his role.

Descriptors: mithology, power, countertransference.


RESUMEN

Frente el argumento de que el mundo necesita dejar de ser apolíneo y que el analista junguiano debe alejarse de Apolo, este trabajo reflexiona sobre la necesidad real de interdicción de Apolo en la práctica analítica. Para esto, fueron rescatados los diferentes enfoques que caracterizaron al dios de la mitología griega como una figura compleja y multifacética. Como herramienta de análisis, se extrajo de las características de Apolo lo que parecía afectar más en la posible interferencia a la actuación clínica: el poder y el distanciamiento emocional. En forma de juicio, refiriéndose a la condena del logos en el medio junguiano, este trabajo se transformó en una declaración en defensa de Apolo y de todos los dioses, porque el sacrificium intellectus no es necesario. El temenos analítico se revela como una arena de voces, el escenario del politeísmo donde todos los dioses pueden y deben hacerse presentes sin ningún tipo de interdicción a este o aquel, para que el analista cumpla su papel.

Descriptores: mitología, poder, contratransferência.


 

 

Introdução: o tribunal

Ergue-se o cenário, o tribunal está montado. Apresentam-se as partes: de um lado os autores da ação, na incansável acusação de que Apolo é danoso à clínica analítica e deve ser interditado desse ambiente de uma vez por todas; do outro, o deus solar, em defesa própria, haja visto que ele é o senhor de Delfos, filho dileto de Zeus, deus do conhece-te a ti mesmo, a argumentar que sem ele o consultório não existiria.

Mais do que uma pesquisa em Psicologia Analítica, este é o relato de um julgamento de extrema relevância para o temenos analítico. Além disso, é o remexer de uma questão que os psicólogos insistem em evitar: a contratransferência. Trazer Apolo como imagem que se presentifica no ofício do analista é, obrigatoriamente, falar de um dos temas que mais suscita desconforto para o clínico.

A pena ou absolvição que aqui serão construídas, na busca pela higienização ou depravação do analista, será a jurisprudência para o julgamento de muitos outros deuses, que como Apolo, podem não caber no consultório.

O desagradável da relação humana

Sabe-se que o movimento projetivo de transferência e contratransferência não define o total da relação analista-paciente. O que se materializa no consultório vai muito além disso, construindo um verdadeiro relacionamento humano onde o paciente não é violado pelas projeções do analista. Mas como não há uma linha clara que estabeleça onde começa um e termina outro, e como isso tornou-se uma variável definidora de êxito ou fracasso na análise, a contratransferência torna-se assunto imprescindível para novos e antigos analistas. Ali muitas vezes está o charco, o obscuro, o inconsciente do processo analítico, e mesmo sendo desagradável, é preciso colocar nas mãos.

Coincidência ou não, o termo contratransferência não consta nos "Índices Gerais" das obras completas de Carl Gustav Jung, embora seja citado pelo menos quatro vezes em três obras diferentes: 16/1, 16/2 e 18/1 (Jung, 1929/2007, 1921/2012, 1935/2011b).

Jung dedicou significativas páginas ao estudo da transferência e da contratransferência, num largo período entre 1913 e 1946, com diferentes abordagens, parecendo um dos assuntos que mais mudou de opinião ao longo de sua trajetória.

Inicialmente foi influenciado por Freud - aquele que cunhou os termos. Depois, distanciando-se do neurologista vienense, ofereceu importantes reflexões sobre as interações no consultório, principalmente após ampliá-la com os estudos alquímicos.

Como resultado disso há inúmeras oportunas análises que incluem mudanças nos pontos de vistas, mas uma delas manteve-se imperturbável ao longo de todos os seus anos: a certeza de que a personalidade do analista é um dos fatores mais importantes do tratamento. Acontece que, como Jung (2012) mesmo diz, "Resistimos naturalmente contra o fato de admitir que possamos ser afetados, no mais íntimo de nós mesmos, por um paciente 'qualquer'" (p. 59, § 365).

Essa forma de compreender o processo analítico traz luz para a cena, incluindo no tratamento a figura do analista. Obviamente que essa claridade gera desconforto, como os olhos que se perturbam após o tempo na escuridão, saindo de uma posição até então cômoda de olhar o outro sem precisar se expor.

Stein (2005) denuncia que a contratransferência tem sido guardada na sombra da prática analítica. Segundo ele, o tema não é analisado profundamente nem na literatura, nem na prática analítica. Os analistas resistem à sua análise, pois "é demasiado doloroso, demasiado conflituoso, demasiado cheio de implicações na turva psique do analista" (p. 63).

Jacoby (2011) afirma textualmente que "o relacionamento psicológico entre analista e paciente ou analisando, tão central para qualquer atividade terapêutica, é relativamente negligenciado tanto na prática quanto na literatura junguiana" (p. 11).

Harriet Machtiger (2005) declara a necessidade de uma literatura mais franca sobre esse tópico crucial por parte dos analistas junguianos. Ela refere uma "reação quase fóbica" dos analistas diante das questões relativas à "revelação que transpira da contratransferência ou do próprio analista", reação essa que interpreta como uma defesa contra o fundamental auto-exame (Machtiger, 2005, p. 63).

A proposta desses estudiosos da psique gira em torno da observação das intervenções do analista no próprio cenário da terapia, proporcionando assim uma avaliação mais precisa da contratransferência. Certamente que para dar cabo disso se faz necessário que o analista submeta seu trabalho e submeta-se à supervisão direta de outro profissional a examinar suas intervenções, associações, sonhos e fantasias.

Visando instrumentalizar essa reflexão profissional, resgatou-se a ideia já estabelecida no meio junguiano, de que o uso da mitologia muito pode contribuir para as percepções a respeito do próprio comportamento. Por revelar os padrões humanos, mostra aquilo que sustenta ou destrói, aquilo que habita em cada um. Os personagens míticos também falam do que acontece no setting terapêutico. Por isso, debruçar-se sobre a vida dos deuses e deusas foi e continua sendo um importante recurso para identificar e lidar com a contratransferência.

"Decifrar o mito é, pois, decifrar-se"

A alma humana foi apresentada pela Psicologia Analítica como um mapa de intrincados e complexos caminhos, um cenário de inúmeros personagens ou palco de muitas vozes.

Carl Gustav Jung desvendou o ser humano para além da vivência direta e pessoal, e James Hillman (1984) deu forma poética a esse entendimento. Nos versos desse, entende-se que o homem, mais do que uma simples pessoa e suas experiências, é também Mãe, Gigante, Vítima ou Herói, Bela Adormecida, Titã, Demônio ou Deus, pois de alguma forma, para não asseverar que na maior parte do tempo, são eles que têm governado as almas.

Nesse mundo encantador da mitologia, entre as inúmeras imagens que falam dos movimentos profundos, muitas delas tocam diretamente na questão do ofício do analista. O conhecimento mitológico descreve os percursos dos pacientes pode ser utilizado de diversos modos, com o intuito de favorecer o indivíduo se perceber no mundo. Os arquétipos revelam atitudes e intenções, a maneira como encara-se a vida, e portanto, o presente e o futuro. Mas também explicitam as atuações do próprio analista, onde os padrões míticos revelam seu comportamento, suas relações com os pacientes e seu destino.

Neste cenário mitológico, encontramos Apolo, considerado o deus do sol, o mais fiel representante de Zeus. Deus Hélio, é portador da luz que representa a consciência. Apolo é um arqueiro, asseteador. Aclamado por muitos, parece desejável para os dias atuais, por ser sinônimo de êxito, ligado à objetividade, à obtenção de resultados por conta da racionalidade e da distância que parece preservar o sujeito do sofrimento.

Contudo, em oposição a esse pensamento, queremos contrapor com argumentos no meio junguiano de que Apolo é causador de perturbação, em especial, no atendimento clínico, sugerindo assim a anulação dessa figura mítica.

Em artigo sobre o poder na relação conjugal, analisando o feminino na contemporaneidade, Ó e Leite (2009) afirmam que "o mundo ocidental precisa se transformar, deixar de ser apolíneo" (p. 193).

Quintaes (2011) estudando a psicoterapia conclui que a clínica junguiana "deve se distanciar serenamente de Apolo, deus da razão, representante dos princípios da consciência e do Logos" (sem paginação).

Além destes textos, em uma obra bastante conhecida sobre transferência-contratransferência, Murray Stein (2005) relaciona o tipo apolíneo ao poder como postura que afasta e impossibilita a relação psicoterapêutica, o que dá a entender, em superfície, o decreto de um tipo prejudicial de contratransferência.

A partir dessas colocações, há que se perguntar: A presença de Apolo seria considerada um problema passível de julgamento? Deveria sofrer algum tipo de sanção por estar no consultório? E aqueles outros perfis, deuses, arquétipos que nos governam, garantem por si o êxito na psicoterapia.

Mais do que isso, seria possível escolhermos ser governados por esse ou por aquele Deus? Estaria ao alcance das mãos do analista escolher qualquer presença ou interdição?

Seria então de esperar que o analista que presencia Apolo em si seja penalizado ou exilado, necessitando encontrar asilo na academia ou na docência, por ser melhor aceito e para evitar a perturbação no tratamento dos pacientes?

Convidamos o leitor a esse julgamento do deus Apolo, não pela figura em si, afinal, sua presença independe de nosso parecer. Mas insistimos em erguer esse tribunal para que todas as partes sejam ouvidas e o júri possa dar seu parecer, não havendo assim mais brechas para acusações indevidas, ou para que todos os deuses criminosos sejam condenados por existirem e desejarem habitar onde não são bem-vindos.

A doutrina

Em direito, doutrina é um conjunto de ideias, opiniões, conceitos que servem de sustentação para teorias; opinião que sustenta um ou vários jurisconsultos a respeito de um ponto controvertido de direito (Doutrina, 2001, p. 1081).

Sendo assim, há necessidade de uma doutrina, ou no caso da psicologia, de um resgate teórico para fundamentar o julgamento, se Apolo pode ou não adentar a clínica junguiana.

Certamente dá-se primeiro voz a C. G. Jung, sobre as relações no consultório, seguido de alguns convidados importantes que contribuíram para a doutrina de absolvição ou condenação do deus.

Em 1913 o mestre suíço trocou correspondências com o Dr. R. Loÿ sobre a abordagem analítica, e por isso, dedicou algumas linhas às explicações sobre transferência e contratransferência. É explícito o sacrifício que um analista deve fazer submetendo-se ele próprio a análise com um especialista. Esse seu posicionamento está presente em praticamente todos os seus textos sobre o tema e transformou-se num pré-requisito indispensável para a formação do profissional, haja visto que "sua personalidade é um dos fatores mais importantes da cura" (Jung, 2011a, p. 261, § 586).

Em fevereiro daquele ano, Jung diz:

Nós, psicanalistas, constatamos com pesar diariamente - e nossos pacientes também - que não trabalhamos com a 'transferência para o analista', mas contra ela e apesar dela. Especulamos não sobre a fé, mas sobre a crítica do doente. Gostaria de, por ora, dizer apenas isto sobre esta delicada questão (2011a, p. 265, § 601).

Essa colocação é uma importante recusa à concepção da análise freudiana que viu na neurose de transferência o aspecto principal para o êxito do tratamento.

Na palestra "The Therapeutic Value of Abreaction", publicada originalmente no British Journal of Psychology, em 1921, a transferência é apresentada como a tentativa de o paciente estabelecer uma relação psicológica com o médico, e diz: "[...] quanto menos o médico e o paciente se entendem, mais intensa se torna a transferência, notadamente em seu aspecto sexual" (Jung, 2012, p. 16, § 276).

Esse tipo de ligação com o médico funcionaria como o substituto de uma relação real, ou seja, como uma compensação pela precariedade da relação do paciente com a realidade. Embora se detenha um tanto na necessidade da análise redutiva, pelo fato de o paciente voltar-se ao analista como objeto sexual, Jung explicita seu entendimento de algo para além de uma relação objetal.

Anos depois daquelas cartas com Löy, fala agora da inevitabilidade da transferência em toda análise que se aprofunda, mas não pelos pressupostos freudianos, e sim, porque é necessário que o médico entre numa relação tão íntima quanto possível com o desenvolvimento psíquico do paciente - o que caracteriza, para ele, uma relação puramente humana.

Não se atendo ao termo contratransferência, Jung escreveu muito sobre o encontro entre analista e paciente, revelando uma profunda preocupação. Trouxe a questão da relação médico-paciente como o encontro de duas pessoas e manteve esse posicionamento até o fim.

Em 1929, oito anos após o texto anterior, escreveu em "Os problemas da psicoterapia moderna" (primeiramente publicado no Schweizerisches Medizinisches Jahrbuch e, em 1950, no Seelenprobleme der Gegenwart), após apresentar as quatro etapas da psicoterapia, escreve poucas e significativas palavras sobre a relação médico-paciente, enquadrando-a como "uma relação pessoal, dentro do quadro impessoal de um tratamento médico" (Jung, 2007, p. 68, § 163). Afirma: "Nenhum artifício evitará que o tratamento seja o produto de uma interação entre o paciente e o médico, como seres inteiros" (Jung, 2007, p. 163).

Em "A vida simbólica", temos os textos sobre os fundamentos da psicologia analítica nas transcrições, encontramos as transcrições de exposições realizadas em 1935. Ficaram conhecidas como "Tavistock Lectures" e foi definido por ele mesmo como uma fala de coisas simples e elementares, principalmente em consequência do tempo exíguo para a tarefa. Na quinta conferência Jung foi incitado a começar pela psicologia e o tratamento desses "problemas meio cômicos, dolorosos e até mesmo trágicos da transferência" (Jung, 2011b, p. 153, § 306).

Parecem as colocações mais desgostosas ou pessimistas sobre a transferência. Define-a é um tipo específico de projeção, e como ato involuntário e inconsciente, não identificada pela própria pessoa. É automática e espontânea, emocional e compulsória, e por ser sempre um mecanismo do inconsciente, a consciência ou a realização consciente tende a destruí-la.

Deixa claro a conotação negativa à presença da transferência no processo analítico ao dizer que "uma transferência é sempre um estorvo, jamais uma vantagem. Cura-se apesar da transferência e não por causa dela" (Jung, 2011b, p. 169, § 349).

Também dedica espaços para a contratransferência, embora bem menor, mostrando que aqueles mesmos fenômenos compensatórios dos pacientes podem ocorrer com os analistas, devido a um contato insatisfatório com o paciente, uma perturbação de relacionamento ou por uma inflação do analista que aceitou o convite de assumir o papel de salvador de seu paciente. Diz-nos mais, que toda profissão tem seus entraves, e o da análise é de tornar-se infeccionada de projeções e transferências. Ainda, é importante ressaltar que Jung, em oposição ao pensamento freudiano de que se o paciente não tiver transferência para com seu analista, jamais será curado, ele afirma: "A cura não depende nem da ausência, nem da existência dela" (Jung, 2011b, p. 170, § 351).

Onze anos depois, em um texto intitulado " A Psicologia da Transferência", apresentou outra versão, agora mais branda, reconhecendo que juntamente com Freud, atribuiu uma importância suprema ao tema, e que em realidade seria exagero supor que quase todos os casos que requerem um tratamento prolongado gravitam em torno da questão da transferência. E ainda: "ao que tudo indica, o êxito ou o fracasso do tratamento tem, no fundo, muito a ver com ela" (Jung, 2012, p. 46).

Ali vê-se um posicionamento amadurecido, parecendo a união de algumas oposições que foi vivenciado ao longo de anos. Reconhece que inicialmente atribuiu uma importância suprema à transferência, e que com o passar do tempo, através de suas experiências, pode compreendê-la como um medicamento que para uns são remédios e para outros, veneno, no sentido que o acontecimento da transferência em certos casos é uma mudança para melhor e em outros, um entrave ao tratamento; e ainda em outros, pode ser irrelevante. Diz que é quase sempre um fenômeno crítico, que brilha nas mais diversas cores, e sua presença é tão significativa quanto a sua ausência.

Sem saber se a obra constrói o autor ou se esse é que se materializa na obra, vemos um verdadeiro estudo da união dos opostos, ou a coniunctio oppositorum, por meio da análise da série de gravuras do "Rosarium Philosophorum" como fundamento para os fenômenos da transferência e da contratransferência. Este tratado alquímico é datado de 1550, de Frankfurt e apresentado na obra de Jung em 10 figuras.

Com isso, Jung extrapolou a dimensão pessoal do fenômeno para considerar a gama de conteúdos coletivos de natureza arquetípica.

Segundo ele, o tratado alquímico é a representação mais completa e, ao mesmo tempo, a mais simples do gênero, onde "tudo o que o médico observa e experiencia com o paciente no momento do confronto com o inconsciente coincide de fato de maneira espantosa com o significado contido nessas imagens" (Jung, 2012, p. 85, § 401).

Por esses caminhos foi reforça a questão do papel da personalidade do médico, reconhecendo-o como infinitamente mais importante para um tratamento psíquico do que aquilo que o médico diz ou pensa.

O réu: Apolo

Hei de lembrar e não esquecerei Apolo asseteador,

que à Dial estância vindo os divos estremecer;

em seu aproximar-se, todos, a um tempo, saltam

de seus sólios quando o fúlgido arco forte flexiona.

Fica só Leto junto ao Zeus, do raio jubiloso;

tampa a deusa o carcaz e afrouxa a corda do arco,

com as mãos o retira das robustas espáduas,

e num pilar do palácio do pai o pendura,

em áureo cravo; e o leva ao trono, e o faz sentar.

Em taça áurea, o néctar o pai lhe oferece,

em saudação ao caro filho; e se assentam depois

os deuses vários. Alegra-se então Leto augusta

de haver gerado o filho forte, e portador do arco.

(Càssola (1994, [sem página] citado por Cabral, 2004, p. 125, versos 1 a 13).

Assim como no "Hino a Apolo", de Càssola, a apresentação do deus não requisita ordem cronológica. Sua história começa no momento em que Apolo, ainda desconhecido pelos outros deuses, entra no Olimpo. Todos estremecem à sua chegada, com exceção de Leto, sua mãe e Zeus, seu pai. Há argumentos de que essa cena se acontecia repetidas vezes, sempre que Apolo regressava ao Olimpo. Cabral (2004) elucubra que o próprio Apolo parecia um intruso naquele local, tendo em vista que a ideia de os imortais despertarem temor uns nos outros é algo estranho à mentalidade grega.

Até a ilha de Delos o teme, ao dizer: "Temo, Leto, um dizer, não te oculto: um Apolo muito ensoberbado, é o que dizem, irá existir e mesmo sobre os divos há de mandar e também sobre os seres mortais do chão Ferraz" (Càssola, 1994, sem página, citado por Cabral, 2004, p. 131, versos 66 a 69). Brandão (2013, p. 89) o descreve como "alto, bonito e majestoso".

Alguns dizem que pelo poderio de seu olhar, tudo esclarece e liberta com sua simples presença. Os traços de sua face aliam força e beleza masculina ao esplendor do sublime, pois ele é a juventude em seu apogeu, em toda sua pureza.

Apolo é uma figura enigmática, multifacetada, plural e que não se submete a reduções ou enquadramentos simplistas. Para Brandão (2013) "o deus de Delfos tornou-se uma figura mítica deveras complicada" (p. 87).

O "Dicionário de mitos literários", argumenta que o deus original tem muitas zonas de sombras e precisa ser visto como inquietante, complexo e também autoritário (Brunel, 1998).

Grimal (1997), ressalta o guerreiro, capaz de enviar de longe uma morte rápida através de suas flechas. Junto com sua irmã, realizam o massacre dos filhos de Níobe, para vingar a honra de sua mãe. Envia aos gregos, acampados diante de Troia, uma peste que dizima o exército, para forçar Agamenmon a entregar a seu pai uma prisioneira, além ainda do massacre de Ciclopes.

Na "Iliada", canto I, Apolo é descrito como o deus do arco de prata, brilha como a Lua - é um deus vingador de flechas mortíferas. Será preciso levar em conta a evolução dos espíritos e a interpretação dos mitos para que se possa reconhecer nele, muito mais tarde, o deus solar, o deus de luz. Originalmente Apolo era relacionado mais à simbólica lunar (Chevalier & Gheerbrant, 2009, p. 66).

Vejamos hoje o deus sol, do conhecimento racional, neto da lua - alma do mundo - com o grão - símbolo que traduz a expressão da vida no mundo subterrâneo e da vida à luz do dia. A ascendência do deus é constituída pela alma do mundo fertilizada pelo grão, trazida para a luz por Leto, onde "simbolicamente Apolo representa a luz do tempo novo instituindo-se no mundo" (Lopes, 2007, p. 217).

Brandão (2014) defende que esse deus que hoje conhecemos, é consequência de um vasto sincretismo e uma bem elaborada depuração mística. Já foi inclusive o deus vingador, de flechas mortíferas, e a ele atualmente cabe uma figura deveras heterogênea.

A descrição de Bolen (2002), em relação a Apolo, é de um filho predileto, que brilha, considerado o mais importante dos filhos de Zeus e seus atributos conduzem ao sucesso. Apolo sente-se completamente à vontade no reino celestial do intelecto, da vontade e da mente. É ligado à lei, à ordem, idealista sem ser fantasioso.

Em diferentes momentos de seu texto a autora (Bolen, 2002) considera como a principal característica de Apolo o distanciamento emocional. Talvez seja em consequência da mente apolínea lógica que tenha problemas de comunicação, incapacidade para relações íntimas e rejeição. Além disso, pelo status elevado do deus, ela considera que a postura de Apolo contribui para seu narcisismo e sua arrogância, e para o que ele oculta, que podem ser traços hostis e dissimulados.

Brandão (2013) trata de resumir a lição apolínea por excelência através da famosa fórmula de Delfos, do "Conhece a ti mesmo", onde "a inteligência, a ciência, a sabedoria são consideradas modelos divinos, concedidos pelos deuses, em primeiro lugar por Apolo" (p. 99).

 

Defesa e acusação

Ali está o arqueiro - uma das inúmeras possibilidades de representação de Apolo.

Certamente asseteador ensoberbado não o descreve por inteiro, mas é trazido à baila como a conduta que mais possivelmente dê margem às acusações.

O arqueiro, ou como o hino apresenta, asseteador parece fazer parte de sua identidade. "Assetear" segundo o mesmo dicionário quer dizer "provocar ferimentos em ou matar (geralmente com setas ou instrumento de incisão); provocar grande sofrimento moral, mortificar, martirizar" (Assetear, 2001, p. p. 321).

Não obstante essa definição, Cabral (2004), explica que a expressão asseteador, segundo Frisk ([sem data], citado por Cabral, 2004), é uma forma abreviada de que golpeia de longe ou a junção de longe e voluntariamente. Está ligada a ideia do arqueiro como aquele que de longe asseteia. Para o autor, a melhor compreensão do termo ligado a Apolo encontra-se no estudo "Les dieux de La Grece", de Walter Otto (1984, p. 96, citado por Cabral, 2004), que identifica a noção de afastamento e distância como uma das principais características da personalidade do deus.

O dionisíaco deseja a embriaguez e, por conseguinte, a proximidade. O apolíneo, ao contrário, deseja o esplendor e a forma, por conseguinte, à distância. Ao primeiro aspecto, essa palavra só exprime algo negativo. Mas ela encobre o que ela tem de mais positivo: a atitude de conhecimento. Apolo rejeita a proximidade excessiva, a submersão nas coisas, o olhar ligeiro, bem como todo desvio da alma na unidade, a embriaguez mística e o sonho extático. Ele não quer a alma, quer espírito. O que significa: libertação da proximidade, de seu peso, de suas estreitezas sufocantes. Em outros termos: nobre distância e alargamento do olhar (Otto, 1984, p. 96, citado por Cabral, 2004, p. 195).

A palavra ensoberbado não aparece desta forma em alguns dicionários da língua portuguesa, mas seu radical, também ligado ao verbo ensoberbar, é o mesmo de "soberba", que quer dizer "altura de algo que é superior a outro; elevação, estado sobranceiro; sentimento de altivez; comportamento excessivamente orgulhoso, arrogância, presunção" (Soberba, 2001, p. 5889).

Para um tribunal qualquer, as condutas de Apolo não ferem a Constituição, muito menos poderiam ser consideradas crime doloso. Mas numa estrutura impositiva, de abuso de poder, seria fácil encontrar elementos de sua vida que o condenassem ao exílio, impedindo-o de adentrar a clínica junguiana.

Seu relacionamento interpessoal também parece depor contra, pelos relatos de Bolen (2002), não apenas por zombar de Eros, o que desencadeou todos os desencontros com Dafne, mas também pelos atritos com Cassandra, Coronis e Mársias. É fato que Cassandra não cumpriu com a promessa de tornar-se sua amante após tê-la ensinado a arte das profecias. Mas a punição do arqueiro ensoberbado foi amaldiçoá-la fazendo com que ninguém mais nela acreditasse. A mesma soberba fez com que mandasse matar Coronis por erroneamente achar que ela o enganava. E um dos episódios mais conhecidos que evidenciam seus excessos, sua vingança e sua crueldade, está no dia em que foi desafiado pelo sátiro Mársias, um tocador de flauta que quis afrontá-lo com a proposta de uma competição musical. Apolo foi ao mesmo tempo competidor e juiz e declarou-se vencedor porque era capaz de tocar a lira de cabeça para baixo, ao passo que o sátiro não o fez. Pelas regras do desafio, o vencedor teria direito de fazer o que bem quisesse com o vencido e Apolo decidiu por esfolá-lo vivo.

Frente a tudo isso, mesmo não havendo definições claras do tipo apolíneo, conforme já foi apresentado aqui por um tanto de sua multiplicidade, sua presença no meio junguiano fez a condenação: o uso do poder e o distanciamento emocional.

O uso do poder

O arqueiro ensoberbado traz à tona a questão do poder que é um tema complexo e multifacetado, e por isso abre brechas a tantos desencontros e interpretações prós x contras, sejam na vida pessoal ou no consultório.

Em inglês power, em Italiano postere, em Francês pouvoir. Palavras que estão ligadas a noção de possibilidades para alcançar objetivos, de superar resistências, autoridade ou influência. O poder revela uma necessidade ou desejo de ter controle, e por isso podemos afirmar que de alguma forma, sempre estará presente de algum modo, nas relações pessoais e terapêuticas.

Na psicologia analítica o poder foi melhor analisado na obra "Abuso de poder na psicoterapia", onde Adolf Guggenbühl Craig (2008), atribui vários sentidos: o confronto que um sujeito faz com outro; o fator de dominância, onde um tenta transformar o outro em objeto sujeitando-se este ao primeiro; a manipulação de alguém segundo seus próprios interesses...

Em uma análise específica do ofício de analista, o autor relaciona os aspectos sombrios da prática, fundamentados no papel do médico pomposo, mesquinho e ávido de poder, do psicoterapeuta falso profeta e charlatão e do assistente social inquisidor. Todos esses profissionais de ajuda tornam-se causadores de dificuldades na relação terapêutica quando são tomados pelo desejo ensoberbado de ajudar, inclusive a figura do professor sabido.

Teoriza que o médico deseja, quando ensoberbado, é objetivar a doença fora de si, e assim procede elevando-se e degradando o paciente.

A denúncia gira em torno da utilização que esse médico faz dos outros. De uma forma concreta ele necessita do paciente na sua condição de doente para manter-se em sua perspectiva saudável. Neste exercício de poder que se desenvolve, o analisando mantém-se numa postura de cura passiva, alimentando sua patologia.

A busca desse poder revela-se na dissociação do arquétipo terapeuta-paciente, ou seja, na clivagem pelo desejo de poder, produzindo duas partes diametralmente opostas e separadas, que deveriam habitar a mesma pessoa.

Esse rompimento estabelece relações unilaterais, como o médico saudável e o paciente doente ou o sábio mestre e o aluno ignorante, o sagrado confessor e o pecador penitente, ainda o profissional superiormente estabelecido e o pobre cliente. O analista mantém-se aparentemente confortável nessa condição, mas paga um preço muito alto, afinal, "Ao se tornar um médico livre de ferimentos, já não pode constelar o fator de cura em seus pacientes" (Craig, 2008, p. 87).

O mais delicado da questão é que o desejo de poder pode passar completamente despercebido pelo próprio analista, mesmo aos sinceros e que se encontram em permanente contato com seu inconsciente, estudando cuidadosamente seus sonhos e quaisquer outras manifestações. Essa dificuldade é apontada por Stein (2005), pois como as interpretações no processo de autoanálise são do ego, a tendência é que ele sempre dê um jeito de justificar essas atitudes ao seu bel prazer, fazendo a manutenção silenciosa do poder. Portanto, é imperioso cogitar esse tipo de reação contratransferencial, pautada no poder.

Parece importante considerar que há diferentes graus de intensidade, como uma paleta de cores, onde temos das mais leves às mais intensas. Também, deve-se atentar para os mecanismos de defesa, em especial, da formação reativa que tenta esconder o desejo de poder, dando-o inconsequentemente ao paciente.

Stein (2005) oferece uma lista de situações que revelam essas diferentes formas que materializam o analista ensoberbado. Vão desde a intenção de dar conselhos não pedidos pelo analisando sobre como melhorar uma atitude mental; recomendações de terapias auxiliares, medicamentos, etc.; a insistência no cumprimento rígido do horário; a postura de unilateralmente colocar fim a análise; as trivializações da influência terapêutica de outras pessoas sobre o analisando; até as interpretações agressivas que estabelecem dominância - o que podem causar sérios danos ao paciente.

A relação pautada no poder gera uma dissociação devido ao distanciamento do analista em relação ao analisando e é classificada por Stein de apolínea, devido a aparente transcendência do processo de afetação distante. Mostra com isso, como esses dois comportamentos estão interligados - poder e distanciamento -, presentificando aquilo que chamamos de "arqueiro ensoberbado".

Contudo, a mesma fonte que define "poder" como "ter domínio ou controle" ou "ter voz de mando", ou ainda "supremacia em dirigir e governar as ações de outrem pela imposição da obediência", também mostra que poder é "ter influência, valimento", "ter autorização para", "ter tranquilidade, paciência para" (Poder, 2001, p. 2244).

Isso faz considerar que há um preconceito por traz do poder, e por consequente, à figura de Apolo.

Stein (2005) explica que, às vezes, as afirmações de poder conscientes do analista são exatamente a coisa correta e eficaz a ser feita. O poder em nome de conter ou de chamar o analisando ao dever são gestos de atenção e interesse terapêutico.

O poder também é abordado por Edinger (2004), numa perspectiva positiva, no sentido de ser um movimento precursor psicológico da centroversão. O argumento do autor é que a vontade de poder se rebela contra a dependência psicológica ao objeto externo. Uma luta por independência e autonomia constitui-se na maneira que a personalidade insegura procura superar suas fraquezas.

No caso do analista, fazer uso do poder para constelar o fato de cura no paciente não pode ser julgado como crime. Usá-lo como intervenção para contrapor ou desfazer o endeusamento que muitos pacientes projetam em seus analistas parece um ato de coragem.

Isso faz pensar que o aspecto positivo ou negativo do poder não está nele em si, mas decorre do uso e da intenção que está por traz, ou seja, do lugar que o poder ocupa na vida do analista, e portanto, na análise - o que oferece subsídios para rever à acusação ao réu.

Se o analista se utiliza das afirmações de poder como principal recurso terapêutico, ou se o analista é possuído pelo poder e estabelece-o como modo de se relacionar com seus pacientes, para dar conta de seus complexos, ele será negativo. Contudo, se for capaz de utilizar-se do poder conforme a necessidade de seus pacientes, a colocando-o a serviço do processo analítico, agirá completamente diferente da atuação sombria que a possessão do poder pode instaurar.

O distanciamento emocional

O distanciamento também já foi julgado em primeira instância como prejudicial à relação terapêutica, afinal, se o analista estiver distante, intocável em relação à influência do paciente, o tratamento perderá com isso, pois "na medida em que o médico se fecha a essa influência, ele também perde sua influência sobre o paciente" (Jung, 2007, p. 164, § 166).

O preço de não ser afetado é não conseguir afetar o paciente. Fechar-se ou esquivar-se à influência do paciente e envolver-se num halo de profissionalismo e autoridade paternais de nada adianta, pois ele apenas se priva de usar um dos órgãos essenciais de que dispõe. Ou como Craig ratifica, "ao se tornar livre de ferimentos, já não poderá constelar o fator de cura em seus pacientes" (Craig, 2008, p. 87).

Mas, ao mesmo tempo em que essa argumentação do distanciamento parece muito sensata, há que se considerar que estar longe demais torna inviável o processo de ajuda. Na medida diametralmente oposta, estar perto demais é tão insustentável e prejudicial como a distância desmedida.

Para James Hall (1995), se o analista estiver por demais próximo do paciente, se a força transferência-contratransferência for grande demais, a perda de fronteiras trará problemas para a análise.

Quando os conteúdos que o paciente projeta são, por exemplo, idênticos aos elementos do inconsciente do próprio terapeuta, ambos despencam na mesma caverna da inconsciência.

Isso é denominado por Jung (2012, p. 138 § 462) de participation mystique, e é analisado por Stein (2005) como consequência da contratransferência 'xamânica', onde o analista entra em estado de identificação com seu paciente. Projetam conteúdos psíquicos um no outro e identificam-se com eles.

Esta proximidade sem certo distanciamento pode ser "um tiro pela culatra" quando as dinâmicas fontes de identificação mútua não são analisadas e permanecem inconscientes. Não pode o analista simplesmente deixar-se levar pelo fluxo do processo sem analisá-lo, pois, criará pontos cegos.

Este tipo de relação contratransferencial, onde não há separação ou conscientização, resulta no que Fordham denominou de contratransferência ilusória, onde o analista tenta tratar e curar no outro, pela falta de distanciamento, os seus próprios conteúdos que estão projetados. Dessa forma "a ilusão reside em que o analisando é a fonte da doença da qual o analista padece" (Stein, 2005, p. 76).

A diferenciação é a essência da questão, é a conditio sine qua non da consciência (Jung, 2008). Isto se torna o elemento fundamental para lidar com a transferência e o antídoto essencial para não reagir a ela de maneira inconsciente. Não se espera que o analista tenha todos os seus conteúdos neuróticos superados, mas se exige que tenha consciência ou disponibilidade para conhecê-los, não sendo tragado pela relação analítica.

Análise dos argumentos

Verificado que a postura apolínea, de certo distanciamento torna-se um pressuposto importante para evitar a participação inconsciente, o veredicto fortalece-se a favor de Apolo.

Além desse entendimento, o júri estabelece como base para seu parecer final, a colocação de Cabral (2004), de que Apolo não é sinônimo de distanciamento, indiferente, e sim, uma "nobre distância" (p. 195). Sua postura é evitação da proximidade excessiva, da submersão nas coisas, do olhar ligeiro. Isso lhe permite uma atitude de conhecimento das coisas, ou seja, de um "alargamento no olhar" (p. 195).

Lopes (2007) também favorece essa absolvição, comparando Apolo ao sol, que ilumina de longe, simbolicamente expressando a noção de distância necessária à objetividade. Sem essa, o analista expõe-se a uma contaminação pessoal através da inconsciência mútua, desrespeitando e deturpando sua relação com o paciente.

Mais do que isso, entende-se que para a relação eu-você, o analista arqueiro se faz imprescindível. Afinal, como será possível estabelecer uma relação onde o outro tem espaço para ser visto e ouvido em sua individualidade se não houver esse distanciamento. Não há como construir essa relação genuína, respeitosa, do eu-você, sem que o analista esteja consciente de si mesmo e, com isso, compreenda quão diferente as pessoas são.

Por isso, conclui-se em superior instância, a favor de Apolo, e mais, alerta-se sobre a necessidade do arqueiro na atuação analítica, afinal, o distanciamento proporciona estar com "um pé dentro e um pé fora", como estabelece Jacoby (2011, p. 134), para a relação puramente humana.

Frente a suposição da ausência de alma em Apolo, eis que se questiona: seria uma dificuldade oriunda do deus ou dos mortais?

Antes do veredicto final, em defesa do deus, James Hillman, já muito conhecido do júri por sua habilidade em oferecer desvios interpretativos das leis rigidamente instauradas, também faz-se ouvir.

Ao se referir à dificuldade de investigação em torno da anima ele fala de algo que serve para que o júri não se vitimize por ideias sentimentais que turvam e embaralham a mente, e atesta:

Hoje em dia, o sacrificium intellectus na psicologia analítica desvia-se de seu significado original - dedicar o intelecto aos deuses - para abandonar sua carga em troca de ternura e maciez. Nem Freud nem Jung tiveram de cortar suas cabeças para servir a psique (Hillman, 1995, p. 17).

Essa e outras colocações do estudioso da alma fazem sentir, mais do que simplesmente entender, que nenhum arquétipo é negativo ou destrutivo em si. Isso subsidia o julgamento por uma outra forma de ler o mundo, para além do paradigma maniqueísta de certo ou errado, bonito ou feio, presente ou ausente, colocando todos frente à frente com a alteridade para com o próprio eu.

 

Palavras finais: o veredicto

O júri conclui pela absolvição de Apolo, dizendo-se impossibilitado de qualquer acusação pela falta de fundamentação, mas ressalta: 'a presença de Apolo na clínica é extremamente desafiadora, não pela sua inconveniência, mas por trazer à arena temas tão delicados que habitam os analistas, declarada ou silenciosamente'.

O poder está presente nas vidas e no consultório - isso é inevitável. No entanto, compreende-se que apenas quando ele se torna o fator dominante na relação analítica, algo está errado. A reação contratransferencial inconsciente e inconsequente, resultante da desconexão do analista consigo mesmo, da cisão do Arquétipo terapeuta-paciente, atua à revelia do processo de cura.

Assim também acontece com o distanciamento emocional. Quando se faz desmedido, impede que o analista ouça, enxergue e toque quem estiver a sua frente, não conseguindo atender aos objetivos do trabalho analítico.

Haverá problema quando a busca de poder se tornar primordial e o distanciamento se mostrar como a única possibilidade de relação como o analisando, mas querer simplesmente negar ou abdicar do poder é mera repressão, considerada por Craig (2008) como escolha superficial ou irresponsável, assim como se reconhece que querer estar perto a ponto de se misturar com o paciente, fá-lo cair num sentimentalismo histérico que impede uma relação verdadeira.

Verifica-se que a acusação para a interdição de Apolo na clínica junguiana é infundada e até equivocada, por ser uma postura unilateral, do mesmo tipo de equívoco que se comete ao tentar reduzir Dionísio à embriaguez e à desordem.

Apolo, assim como Dionísio, não são problemas em si, muito menos um a solução do outro. Não necessitam de 'conserto' ou adequação.

Desse modo, a nova pergunta que o analista deve se fazer é: Quando Apolo deve adentrar a clínica analítica?

Conclui-se que, caso o profissional não seja capaz de fazer esse questionamento, correrá o risco de desenvolver uma atitude de negligência por não ter clareza de qual momento deve evocar qual deus, seja Apolo ou outros, para que possam ombrear em busca do objetivo final.

Se a divindade estiver a serviço das necessidades do paciente, será sempre bem-vinda. Contudo, se atuar inconsciente e desenfreadamente, em função de seus impedimentos pessoais ou da pura satisfação do analista, então, deverá ser interditada naquela ocasião.

Embora haja o impulso de querer legislar a favor de Apolo e absolvê-lo por inteiro para que adentre a clínica de cabeça erguida, como sempre fez no Olimpo, este trabalho acabou se tornou-se uma carta em defesa de todos os deuses e de todos os analistas, sem que precise existir apenas um em detrimento de outro.

O consultório configura-se como uma arena de vozes, palco do politeísmo, onde todos os deuses podem e devem se presentificar. Nenhum deus pode ser tomado como problema ou solução. Inclusive, há que se considerar que a falta de diálogo com qualquer uma das divindades poderá levar o analista à sua própria destruição, afinal, não foi por esquecerem Éris, a deusa da discórdia, que teve início a maior destruição da história?

Conta-se que a deusa Éris foi convidada a não comparecer nas núpcias de Peleus e Tétis (a mais bela das nereidas). Então, lançou o Pomo da discórdia, a maçã de ouro, que foi destinada a mais bela das deusas que ali estava. Hera, Atená e Afrodite altercaram-se e a solução que Zeus ofereceu foi estabelecer Paris, o pastor como juiz dessa disputa.

Cada uma delas fez uma promessa tentando convencê-lo. Afrodite, que foi eleita, assegurou que ele teria o amor da mulher mais bela - Helena - a rainha de Esparta (e mulher de Menelau). Assim, com o rapto da rainha estava armada a cena que se desdobrou na guerra que durou dez anos e deixou para a posteridade inúmeras lições... Entre elas, a de que nenhum deus ou deusa deve ser deixado de fora de importantes acontecimentos, nem mesmo a discórdia, sob pena de pagarem um alto preço.

Se Éris, a Discórdia provocou todo esse estrago por não ter sido convidada para um evento, então, que fará conosco Apolo, o arqueiro ensoberbado, se tentarmos interditá-lo do templo do autodescobrimento?

 

Referências

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Recebido: 09 mar 2018
1 ° revisão: 19 Jul 2018
Aprovado: 16 out 2018
Aprovado para publicação: 25 mar 2019

 

 

Conflito de interesses: O autor declara não haver nenhum interesse profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a este manuscrito.
Minicurrículo: Marlon Reikdal - Psicólogo formado pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Pós-graduado em Psicologia Analítica pela Pontifícia Universidade Católica - PUC-PR. Atua em consultório particular como analista, em atendimentos individuais e em grupos, supervisor clínico. Docente de pós-graduação das disciplinas de Saúde Mental e Espiritualidade, Suicídio e Metodologia de Pesquisa. E-mail: marlonreikdal@gmail.com