ARTIGO DE REFLEXÃO
DOI: 10.21901/2448-3060/self-2016.vol01.0002

 

O autorretrato revisitado de uma avó

 

The revisited self portrait of a grandmother

 

El autorretrato revisto de una abuela

 

 

Denise Diniz MAIA

São Paulo, SP, Brasil

 

 


RESUMO

Autorretratos são espelhos da psique profunda, reflexos de estados da alma. Ao serem olhados em série, como as imagens dos sonhos, revelam um processo em curso, um caminho trilhado. São retratados aqui alguns dos papéis vivenciados pela autora, como observadora de processos psíquicos, terapeuta de crianças em seu fazer lúdico, e como avó de meninas em uma constante descoberta, enfatizando a busca da criança interior como parte importante da maturidade criativa. Na ânsia de completar-se, o homem passa por diversas etapas e tarefas que referendam a primeira e a segunda metade da vida. Reconhecer e integrar as conquistas e as perdas dessas fases é condição necessária à busca de si mesmo.

Descritores: psicologia da criança, membros da família, individuação, avós, crianças.


ABSTRACT

Self-portraits are mirrors of the deep psyche, reflections of the states of the soul. When serially analyzed, as images of dreams, they reveal an ongoing process, a trodden path. Some of the roles experienced by the author -as observer of psychic processes, therapist of children in their playful activities, and grandmother of girls in a constant discovery-, are pictured here, emphasizing the search for the inner child as an important part of the creative maturity. Eager to be fulfilled, human kind goes through several steps and tasks that endorse the first and second halves of life. Recognizing and integrating the gains and losses of these stages is a necessary condition to search for oneself.

Descriptors: child psychology, family members, individuation, grandparents, children.


RESUMEN

Los autorretratos son espejos de la psique profunda, reflejos de los estados del alma. Cuando son analizados en serie, como las imágenes de los sueños, revelan un proceso continuo, un camino recorrido. Son descritos aquí, algunos de los roles experimentados por la autora, como observadora de los procesos psíquicos, terapeuta de niños en su quehacer lúdico, y abuela de niñas en un descubrimiento constante, haciendo hincapié en la búsqueda del niño interior como una parte importante de la madurez creativa. Con ansias de sentirse completo, el hombre pasa por varias etapas y tareas que avalan la primera y la segunda mitades de la vida. Reconocer e integrar los logros y las pérdidas de estas etapas es una condición necesaria para buscarse a sí mismo.

Descriptores: psicología infantil, miembros de la familia, individuación, abuelos, niños.


 

 

Introdução

Há muito tempo, por ocasião de uma mostra de arte no Palazzo Reale em Milão (Itália), senti-me profundamente tocada por um quadro de Vincent van Gogh: nesta obra ele pintou a sua própria imagem. Comecei, a partir deste encontro com a tela, a me interessar e a me dedicar ao longo de vários anos, aos estudos dos autorretratos, de vários artistas, abordando-os sob diferentes óticas. O ser humano busca se eternizar deixando marcas de sua própria imagem: seus diversos estados de espírito em diferentes momentos da vida, como sugere a escritora Kátia Canton (2002).

Autorretratos, quando examinados em série, assim como as imagens de um sonho, revelam o contínuo fluxo de imagens do inconsciente.

Durante as diversas fases de um caminho de individuação, são realizados vários autorretratos. Na medida em que nos deparamos com as imagens que surgem em diferentes momentos, partes de nós mesmos vão se registrando e se revelando em um processo de interrogação e de construção constantes: como nos vemos em cada momento; as transformações da imagem em cada etapa e em diferentes idades. Mas, algo se mantém apesar das mudanças: a criança que sempre existiu e está presente na essência de cada um.

O último autorretrato realizado por Vincent van Gogh, que também havia sido retratado na conhecida tela "Quarto em Arles", embora fosse um momento de intensa angústia o pintor, com o rosto marcado pela dor e sofrimento , trazia o artista muito jovem, referência a um passado distante. Coube ao quadro guardar as marcas do tempo e o jovem que sempre nele existiu. Podemos dizer que, à medida que envelhecemos, nos tornamos cada vez mais nós mesmos.

Bachelard e Danesi (1996), abordando o arquétipo da infância, afirmam que há na alma uma infância imóvel, mas sempre viva: "Éramos nós ou estivemos sonhando ser, e agora ao sonhar sobre a infância, somos nós mesmos?" (p. 103).

Como terapeuta infantil, sou convidada a participar do "processo do vir a ser" de cada criança que acompanho em meu consultório, nas quais as mudanças naturais ao longo do crescimento vão sendo constantemente reveladas.

Como disse Jung (2002),

A infância, por conseguinte, é importante, não somente porque várias atrofias dos instintos dela se originaram, como também porque ela é o tempo em que surgem, terrificantes ou motivadoras, diante da alma da criança, aqueles sonhos e imagens da ampla visão, a condicionar-lhe o destino. (p. 60; OC VIII/1: 98)

O lúdico e a criança que toma consciência de si mesma

Durante o setting ludoterápico, diversos recursos são utilizados como mediadores do encontro analítico: a linguagem não verbal, os temas das brincadeiras, as fantasias e as lembranças ajudam no esclarecimento e na elaboração das angústias nos primeiros anos de formação do desenvolvimento da criança.

A pintura, a argila e as histórias são formas de comunicação e expressam imagens simbólicas, possibilitando a compreensão do mundo psíquico infantil e anunciando o que deve ser olhado, vivenciado e integrado à consciência.

As histórias contadas, lidas e/ou representadas trazem uma linguagem mágica, que encanta e que aponta possibilidades e saídas. Ser conduzido pelo prazer do espontâneo e da descoberta é estimulante e libertador.

Segundo Nise da Silveira (1981), "Os contos de fada trazem à consciência infantil em formação, as ricas substâncias contidas nas raízes da psique." (p. 11).

De acordo com Jung (2000), "Mitos e contos de fada dão expressão a processos inconscientes e sua narração produz sempre um revivescimento e uma recordação de seu conteúdo, operando, consequentemente, uma nova ligação entre a consciência e o inconsciente." (p. 170; OC IX/2: 280).

Aquele que lê ou escuta, compartilhando de maneira sintônica com a criança esse momento de fantasia, valida para ela que ela é aceita como é. Há um poder transformador na validação que a criança recebe. Essa é uma experiência que repara e ressignifica instâncias de seu mundo interno.

A atividade lúdica promove a integração, a individuação e a consciência de si, tendo os jogos infantis como coadjuvantes no processo de amadurecimento das funções cerebrais. Brincando, a criança demonstra como está, por meio dos padrões de organização psíquica: cria, elabora, traz sentimentos profundos e vivencia papéis futuros. Naturalmente, desenvolvem-se a capacidade perceptiva, criativa e os laços afetivos e de confiança.

É a partir da experiência e da vivência, e não do exercício da razão, que as crianças representam temas arquetípicos em suas brincadeiras. Essa é uma das atividades iniciais do ego e já está presente no bebê, que a realiza a partir da descoberta de seu próprio corpo. A criança brinca através de seu corpo e assim vai reconhecendo seus limites, ampliando movimentos e se apropriando dela mesma. Ela se humaniza a partir da brincadeira, conciliando o processo interno de formação de si mesma e a criação de vínculos com o mundo que a rodeia. A ludoterapia propicia a mobilização de conteúdos que auxiliam a construção das próprias imagens que cada criança realiza.

O novo papel de avó

Além dos autorretratos que foram "pintados" ao longo da minha vida - mulher, mãe, cuidadora de crianças, terapeuta - surge a mais nova imagem: a mãe dos filhos que se tornam pais. A mulher madura que vou me tornando, na figura da avó das filhas de meus filhos. É o ciclo da vida que se renova.

Virar avó é a junção de dois lados: da mulher que envelhece e se apropria de sua nova condição e daquela que acompanha e brinca, em uma constante descoberta, com seus netos. É uma releitura do que foi vivido: não sou mais criança, mas trago minha criança à vida; não sou mais a mãe de uma criança, sou a avó, no processo de descoberta desse papel. Avó e neta - sistemas psíquicos que se tocam e estão em íntima relação de troca.

A imagem de avós hoje revela outros atributos: pessoas ativas com objetivos próprios, que se aprimoram, por meio de seus recursos e experiências, que lhes nutrem e lhes trazem sentido. Tudo isso vai se traduzindo em novas formas de se relacionar com os netos.

Os avós apresentam para a criança a ancestralidade, a tradição familiar, a noção de continuidade da existência. As crianças são interlocutores para os avós, que aprendem com os netos e também lhes ensinam.

Para Kipper e Lopes (2006), tornar-se avó caracteriza o quarto processo de individuação no ciclo de vida familiar, um processo de passagem entre gerações: estabelece-se um diálogo entre três gerações diferentes, promovendo o desenvolvimento dos jovens e colaborando para a formação de sua identidade. Ao olharem juntas a origem, a perspectiva de um futuro a ser vivenciado se propõe. Na memória familiar, horizonte afetivo e intelectual dos netos, os fios de vivências e aprendizagem estão imbricados em uma rede: passado, presente e futuro dialogam.

A relação com o neto remete a um passado que retorna habitado, não uma repetição, mas a vivificação de emoções intensas e inéditas, ressignificando a vida, rito de passagem para uma nova fase a redescoberta da própria criança interna adormecida. O neto, como objeto privilegiado de amor, resgata vivências antigas e memórias.

O ciclo da vida é dinâmico e tem seu próprio ritmo. Tanto a infância como a velhice são fases de aprendizagem e crescimento, nas quais somos convidados a participar nas trocas, descobertas e reconstruções no convívio com o outro. Assim pode ser a relação da avó com o neto, mesmo em fases diferentes e com discursos distintos: ambos dedicam tempo para brincar e se ouvir.

Na mitologia podemos encontrar referências importantes de grandes avós que aparecem nos mitos e histórias, trazendo diferentes atributos. Do kaos emerge Gaia, a Magna Mater, a qual, como matriz, concebe todos os seres. Ela personifica a base onde se sustentam todas as coisas.

A avó como personificação da deusa primordial pode trazer em sua representação as mais diferentes características: há aquelas distantes que não conseguem se doar; aquelas de avental que, em suas cozinhas, transformam em alimento o afeto e a experiência; aquelas que inspiram; e tantas outras, únicas e preciosas em seu papel.

A avó é uma representação simbólica do arquétipo da mulher sábia, que viveu várias experiências ao longo da vida, muitas vezes mediante enormes fracassos e perdas. Ainda assim, não é algo que esteja pronto, mas uma obra em andamento.

Segundo Clarissa Éstes (2007), a tarefa crucial dessa fase é simplesmente viver a vida plenamente, de acordo com a sua própria capacidade e não segundo as referências do outro. É viver para que, a partir dessa experiência, o outro possa se inspirar e se legitimar. Tudo isso inclui a sabedoria de se lidar com a vida com compaixão e humildade, sempre com disposição para se abrir a aprender de novo.

As avós podem oferecer uma nova escuta aos netos, em vez de bombardeá-los com novas perguntas. Há um grande desafio em se descobrir a justa medida. Estar próxima sem invadir; disponível se necessário, silenciosamente; ser capaz de fazer pelos netos, sem usurpar a função dos pais, ao contrário, lhes confirmando em seus papéis.

Como me sinto especial ao ser convidada por minhas netas a brincar. E as brincadeiras da criança que fui vêm vividamente em minha memória, fazendo-me relembrar situações, momentos e pessoas. Torno-me assim a vovó-criança, participando de situações para as quais os pais e outros adultos não são convidados a participar.

Puer e Senex

A alma de uma mulher pode ser mais velha do que o tempo, mas seu espírito deve ser eternamente jovem.

Na maturidade então uma transformação considerável acontece - há um alinhamento da vida: alguns velhos conceitos egoicos dão espaço a um novo Self que renasce. Passamos a perceber que devemos e podemos cuidar de nós mesmos e vivificar nossa criança interior.

Enquanto na primeira fase nos lançávamos para o mundo externo buscando realizações, hoje, no processo de envelhecimento, vamos interiorizando e nos libertando de convenções. Permitimo-nos escutar o silêncio, outras perspectivas após um longo caminho trilhado. De novo vemos uma estrada e agora nos propomos a caminhar com mais suavidade. É a solidão sábia sem autoalienação após o confronto consigo mesmo. Torna-se necessário que, por meio da introspecção, a voz do Self atue livremente.

Nessa etapa, os arquétipos do puer e do senex se encontram, possibilitando a renovação e uma consciência ampliada. O arquétipo do puer está ligado ao arquétipo da criança como símbolo de esperanças futuras e de novas possibilidades da vida. São os elementos animadores, encantadores e revigorantes da experiência humana. O arquétipo do senex se junta ao do velho sábio, trazendo a reflexão e a maturidade, em outra qualidade da ação, não mais nos ímpetos fálicos do herói, mas na quietude e em uma força interna que fortalece e guia.

Segundo Dulcinéia Monteiro (2008), analista junguiana, em seu livro "Puer-Senex", forma-se um eixo relacional, vital no desenvolvimento psicológico. Somos colocados no eterno ciclo das mudanças e aprendizagens que acontecem ao longo de toda nossa vida. A criança precisa desenvolver as dinâmicas arquetípicas do velho, tais como limites e ponderações; e as pessoas que envelhecem não podem abrir mão da busca da espontaneidade e da criatividade.

A riqueza do puer traz possibilidades de mudanças e de renovação, mas, a efetivação vem da sabedoria do senex, que traz sentido a todas as experiências. Puer e senex apresentam duas qualidades opostas de tempo: o tempo cronológico que tudo devora e o Kairós, o tempo eterno e não linear, o tempo da oportunidade que impulsiona o investigar e o buscar. Essas polaridades fornecem a vivência para se entender um processo que acontece através do tempo: começo, meio e fim.

Reconhecer a criança dentro de nós, suas necessidades e sentimentos é fundamental. Que especial termos nossas netas para nos ajudar nesse processo! Quando comecei a elaborar este texto, minha neta de quatro anos fez um desenho (Figura), retratando uma pessoa. Perguntei-lhe quem ela havia desenhado e ela me respondeu que era eu mesma, com os cachinhos no cabelo. Poderia existir um autorretrato da minha parte neta mais revelador?

E assim, na sequência de autorretratos de toda uma existência, surge na maturidade a imagem da criança como símbolo de união dos opostos: ela é a mediadora e é aquela que torna inteiro o ser, possibilitando uma reconciliação com o já vivido e uma abertura para as novas vivências que certamente virão.

 

 

Jung fala sobre a criança como início e fim, ao simbolizar a essência pré- e pós-consciente do homem. Ela está ligada ao estado de inconsciência do começo da infância e, como símbolo do futuro, traz uma antecipação do ciclo da vida, em um ímpeto de autorrealização, mostrando caminhos e possibilidades que levam à totalidade. Assim, a criança reúne e reconcilia em si os opostos, sendo também um símbolo do Self.

Clarissa Éstes (2007) fala da importância de se tornar uma lanterna luminosa balançando na escuridão e iluminando o próprio caminho. É viver através da luz da própria alma que se irradia, iluminando também os passos de outras pessoas.

Os atributos caracterizadores do arquétipo da criança renovam a força vital e o desenvolvimento criativo, contínuo e dinâmico, no ciclo natural da vida.

 

Palavras finais

Fernando Pessoa (1973), em um sensível poema, retrata a preciosidade dessa experiência:

A criança que fui chora na estrada.

Deixei-a ali quando vim ser quem sou;

Mas hoje [...]

Quero ir buscar quem fui onde ficou.

[...]

Se ao menos atingir neste lugar

Um alto monte, de onde possa enfim

O que esqueci, olhando-o, relembrar.

Na ausência ao menos, saberei de mim,

E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar

Em mim um pouco de quando era assim.

[...]

Uma criança interna foi perdida, abandonada ou não reconhecida em uma fase anterior, mas, nesse momento precisa ser resgatada. E assim, quando damos atenção a ela, a nova criança dotada de uma maturidade criativa começa a tomar forma.

 

Referências

Bachelard, G., & Danesi A. P. (1996). Poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes.

Canton, K. (2002). Autorretrato, espelho de artista como forma de pensar uma exposição de arte. Tese de Livre-docência, Escola de Comunicação e Artes - ECA, Universidade de São Paulo - USP, São Paulo.

Éstes, C. (2007). A ciranda das mulheres sábias. São Paulo: Rocco.

Jung, C. G. (2000). Aion: estudos sobre o simbolismo de si-mesmo. In C. G. Jung, Obras Completas (vol. IX/2, 6a ed.). Petrópolis, RJ: Editora Vozes.

Jung, C. G. (2002). A energia psíquica. In C. G. Jung, Obras Completas (vol. VIII/1, 8a ed.). Petrópolis, RJ: Editora Vozes.

Kipper, C. D. R., & Lopes, R. S. (2006). O tornar-se avó no processo de individuação. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 22(1), 29-34. Recuperado em 07 de março de 2016, de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722006000100004&lng=en&tlng=

Monteiro, D. M. R. (Org.). (2008). Puer-Senex: dinâmicas relacionais. Petrópolis: Editora Vozes.

Pessoa, F. (1973). A criança que fui chora na estrada. In M. R. M. Sabino, & A. M. M. Sereno (Orgs.), Novas poesias inéditas (p. 48). Lisboa: Ática.

Silveira, N. (1981). Introdução. In M. L. Von Franz. A interpretação dos contos de fada (p. 11). Rio de Janeiro: Achiamé.

 

 

Recebido: 03 mar 2016
1a revisão: 15 mar 2016
Aprovado: 20 abr 2016
Aprovado para publicação: 02 maio 2016

 

 

Minicurrículo: Denise Diniz Maia - Psicóloga clínica, com especialização em arte integrativa e em terapia psicomotora e cinesiologia psicológica, com base junguiana. Analista didata do Instituto Junguiano de São Paulo (IJUSP); membro da Associação Junguiana do Brasil (AJB); filiada à International Association for Analytical Psychology (IAAP/Zurich). Diretora administrativa e de comunicações do IJUSP no biênio 2014/2016; coordenadora do grupo de estudos psicológicos da criança do IJUSP. Exerce trabalho clínico com crianças, adolescentes, adultos e orientação de pais. E-mail: maiadenise@terra.com.br; www.denisemaia.com.br.
Conflito de interesses:  A autora declara não haver nenhum interesse profissional ou pessoal que possa gerar conflito de interesses em relação a este manuscrito.